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OS DIFERENTES USOS DE “INCLUSÃO” E “INTEGRAÇÃO” NA EDUCAÇÃO ESPECIAL

Belmira Batista Chaves

Ivete Schneider Bergamini

Rosmarí Favaretto Walker


RESUMO

O artigo pretende discutir os termos “inclusão” e “integração” e seus diferentes usos em alguns textos oficiais e pioneiros, com o objetivo de apontar para um redimensionamento do conceito de educação especial à luz da proposta da inclusão em educação. Entre outros aspectos, argumenta-se que a Educação Especial deixa de ser definida conforme o foi tradicionalmente (em termos de sua “clientela deficiente”) para ser ampliada e redefinida em dois sentidos: quanto ao seu campo de ação e quanto à sua população alvo. Discute-se, ainda, algumas das implicações deste redimensionamento à prática pedagógica e organização educacional.

Palavras-chave Crianças surdas - Linguagem. Linguagem por sinais crianças surdas - Escrita. Leitura.


INTRODUÇÃO

Apesar do longo tempo em que vimos discutindo a questão da inclusão e da integração, muitas dúvidas ainda restam a respeito de ambas: são a mesma coisa? O que as diferencia? O que significam, afinal? Colocar um aluno com dificuldades na sala do ensino regular é incluir? Mas isso não era o que fazíamos no período em que se falava de integração?

Este artigo tem alguns objetivos. O primeiro é estabelecer as diferenças entre integração e inclusão, não com o intuito de estabelecer uma separação definitiva entre ambas. Pelo contrário, e aqui entramos no segundo objetivo, o intuito é de resgatá-las como partes de um mesmo processo histórico, e, portanto, como inseparáveis e correlacionadas.

Um terceiro objetivo refere-se a ilustrar o quanto essas confusões estão presentes até mesmo no primeiro texto que oficialmente versa sobre o assunto: a Declaração de Salamanca (1994). Aqui, utilizaremos como base a versão inglesa, principalmente por dois motivos:

a) por ter sido a primeira lançada internacionalmente, o que lhe confere, no nosso entender, o status da primeira versão oficial mundial;

b) por diferir, em essência, em várias partes importantes, da versão brasileira. A versão inglesa é mais abrangente e contém informações importantes que foram omitidas na versão brasileira.

A respeito das diferenças entre as versões brasileira e inglesa da Declaração, cabem aqui algumas informações. Primeiro, a lembrança de que a versão brasileira foi traduzida, através da Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, vinculada ao Ministério da Justiça- Secretaria Nacional de Direitos Humanos - CORDE, da versão espanhola para o português. A versão inglesa, por sua vez, foi a primeira versão a ser publicada, sob responsabilidade da UNESCO, logo após a Conferência que originou a Declaração.

Segundo, cabe afirmar que existem três seções inteiras na versão inglesa que não constam na versão brasileira. Estas seções tratam, respectivamente: da Parte 1, denominada Educação para Necessidades Especiais: uma visão geral, em que se discute as origens da Conferência de Salamanca, e se estabelece o “palco” de redefinição da educação especial; da Parte 2, intitulada A Conferência, que mostra como foi sua organização e as sessões de abertura e de encerramento; e da Parte 3, com o título de Resumo das Apresentações Temáticas e Discussões, que mostra com detalhes importantes os principais argumentos levantados nas palestras e grupos de discussão a respeito dos quatro grandes temas que nortearam a Conferência: Política e Legislação, Perspectivas Escolares, Perspectivas Comunitárias e Parcerias e Estabelecimento de Redes. Na versão brasileira, temos apenas a Declaração propriamente dita e as Diretrizes norteadoras de linhas de ação para a implementação do sugerido na Declaração.

Trata-se de uma observação importante a ser feita porque nas três partes omitidas residem discussões e relatos de estudos que embasaram toda a movimentação a favor da inclusão. É importante, ainda, porque já nestes trechos se pode perceber, entre os próprios palestrantes que discutiram a integração/inclusão na referida Conferência, a alternância do uso desses dois termos de forma indiscriminada, ora como sinônimos, ora como termos diferentes, mas complementares, conforme veremos em maiores detalhes mais adiante.

Retomando os objetivos do presente artigo, resta um, que segue os comentários feitos acima sobre a Declaração. Pretendemos argumentar que neste movimento geral de Educação para Todos, que tem se refletido nas diversas iniciativas nos campos da educação para se ampliar o oferecimento de educação a todo o alunado, independente de suas características particulares, a Declaração de Salamanca representa um marco importantíssimo, porque redefine a educação especial em termos de seu alunado e de seu foco de ação, ambos agora muito mais abrangentes, o que, sem dúvida, traz implicações significativas à organização dos sistemas educacionais e das escolas propriamente ditas.

Integração OU Inclusão: em que pé estamos e de onde viemos? Considerando a realidade brasileira é possível dizer, sem muito receio, que estamos num momento de discussão plena a respeito de uma ou de outra alternativa. Na própria Declaração de Salamanca (versão brasileira) lemos, na maioria das vezes, nas Diretrizes e na Declaração propriamente dita, a palavra integração, quando na inglesa fala-se em inclusão. Pelos lugares por onde passamos e a questão retorna em forma de pergunta ou de afirmação, sempre ouvimos as pessoas discutirem e perguntarem o que caracteriza cada uma das alternativas. A conclusão a que se chega é a de que a discussão – e muito menos o entendimento – estão longe de serem esgotados, pelos menos em nossa realidade.

A grosso modo, podemos identificar, entre os autores contemporâneos, os que percebem as diferenças entre integração e inclusão e fazem questão de marca-las, alegando, apropriadamente, as implicações paradigmáticas, atitudinais e pra- ticas oriundas da assunção de uma ou de outra perspectiva.

Dentre os autores que marcam a diferença entre integração e inclusão, podemos citar Werneck (1997, p. 51-53), quando diz:

O sistema de integração é organizado a partir do conceito de corrente principal, conhecido como “mainstream”. [...] O processo de integração através da corrente principal é definido pelo chamado sistema de cascatas. Nele, todos os alunos têm o direito de entrar na corrente principal e transitar por ela. Podem tanto descer ou subir na cascata em função de suas necessidades específicas. [...] A inclusão questiona o conceito de cascatas [...] A objeção é que o sistema de cascatas tende para a segregação [...] porque um sistema que admite tamanha diversificação de oportunidades para os alunos que não conseguem ‘acompanhar a turma’ no ensino regular não força a escola a se reestruturar para mantê-los.[...] Inclusão é, assim, o termo utilizado por quem defende o sistema caleidoscópio de inserção. [...] no sistema de caleidoscópio não existe uma diversificação de atendimento. A criança entrará na escola, na turma comum do ensino regular, e lá ficará. Caberá à escola encontrar respostas educativas para as necessidades específicas de cada aluno, quaisquer que sejam elas. A inclusão [...] tende para uma especialização do ensino para todos. [...] A inclusão exige rupturas.

De fato, a se pensar a questão por esses argumentos, a inclusão fica claramente caracterizada por uma ruptura conceitual e paradigmática quando comparada à integração. O foco de ação fica visivelmente redirecionado: do indivíduo para o sistema e suas diferentes formas de organização para ajuste às necessidades dos que as possuem. Fica, ainda, claro o aprofundamento das discussões no plano político: é necessário discutirmos – e sabermos - o que temos em mente quando falamos em educação: que tipo de sociedade queremos construir, de que mudanças precisamos para que isto se torne realidade. Em outras palavras, impõe-se a necessidade de sabermos o que é preciso redefinir (em todas as dimensões: individual, política, social, econômica, educacional, familiar...) para que os novos objetivos se concretizem.

Por outro lado, existem também aqueles que percebem as diferenças, reconhecem as implicações acima mencionadas, mas optam por enxergá-las como partes diferenciadas de um mesmo processo histórico de construção de valores cada vez mais humanistas e democráticos — por exemplo, Carvalho (1998, 2000). Incluímo-nos neste segundo grupo. Uma das bases sobre as quais defendemos os argumentos aqui propostos refere-se à própria origem (DICIONÁRIO..., 1987) das palavras “integração” e “inclusão”. Curiosamente, em termos etimológicos “inclusão” origina-se do latim includere, que significa confinar, encerrar, colocar dentro, ou até mesmo bloquear, ao passo que a origem da palavra “integração”, também do latim integrare, significa renovar, tornar-se inteiro.

Em outras palavras, o alerta segue no sentido de termos cuidado aos nos desvencilharmos tão facilmente de “velhos” conceitos para prontamente assumirmos “novos” conceitos. Estes, embora adotados com a melhor das intenções, podem, por vezes, conduzir à perda do foco real de discussões: o que é especial agora? Ou: o que deve ser especial na educação para que ela se torne de fato aberta a todos?

Integração E Inclusão: um enfoque histórico. Em resumo, a pertinência dos argumentos da primeira perspectiva discutida é inegável. No entanto, cabem algumas considerações a esse respeito. Uma delas refere-se à questão, de ordem prática, das ofertas de que já dispomos, e que representam, historicamente, toda uma reorganização de sistemas a favor de uma educação cada vez mais democrática, com preocupações referentes ao acesso e permanência de todos os alunos: o que fazer com elas? Dissolvê-las? Recontextualizá-las à força?

No fundo, não podemos esquecer que a luta pela inserção (seja ela por cascata ou por caleidoscópio) diz respeito ao ideário de uma educação democrática, com base em princípios humanistas, reforçados pela afirmação dos direitos humanos, e que culminam (mas não terminam) na proposta de Educação para Todos, oficializada em Declaração Mundial em 1990.

Também não podemos esquecer que nesta luta sempre esteve presente a preocupação com todos os grupos excluídos, e não apenas com portadores de deficiências. Isto significa que os sistemas que têm tentado se organizar para atender essas premissas, o fazem das mais variadas formas em todo o mundo. E que, acima de tudo, e exatamente em função dessa variedade, o conceito de inserção (seja pela inclusão, seja pela integração), é sempre relativo: aos olhos de quem é inserido, aos olhos de quem insere, aos olhos de quem planeja as possibilidades de inserção e ao contexto em que a mesma acontece. Esta perspectiva, aliás, está detalhadamente discutida em Booth e Ainscow (1998).

É por isso que, entre vários estudos promovidos pela UNESCO e pela Organização pelo Desenvolvimento Econômico e Cooperação (OCDE, UNESCO, 1994), tem-se verificado o quanto variam as formas de integração/ inclusão, a despeito de, na teoria, todos concordarem com o mesmo princípio: o de possibilitar acesso e permanência a todos os alunos, por uma questão simplesmente de direitos humanos.

Desta maneira, cremos ser mais prudente marcarmos as diferenças entre integração e inclusão, e resgatá-las novamente, como parte de um processo único, histórico, que tem procurado progressivamente afirmar os direitos humanos ao longo, principalmente, deste século. Neste sentido, a integração, tal como a inclusão, representaria diferentes momentos e possibilidades concretas de luta pela afirmação do direito à educação para todos, num processo que prima pelo respeito às possibilidades de cada contexto em particular.

Assim, se num dado momento, num dado país, a integração ainda representa o que é possível e mais próximo do alcance da educação para todos, que assim o seja. Tal como precisamos aprender a respeitar os diferentes ritmos de aprendizagem de nossos alunos para promover a inclusão, também precisamos, para promovê-la internacionalmente, respeitar os países quanto aos seus ritmos de entendimento e absorção de novos paradigmas, e de ajuste aos mesmos, sem atropelar sua historicidade.

Um exemplo: a confusão “Declarada” em Salamanca Na verdade, o texto da própria Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994, p.32-33), documento de alcance tão generalizado por todo o mundo e inspirador de reformas educacionais em vários países, alterna entre os termos integração e inclusão. No relatório final (versão inglesa), vemos trechos interessantes que ilustram o argumento acima. Na Parte 3, por exemplo, relativa ao Resumo das Apresentações Temáticas e Discussões, o Tema 1, intitulado Política e Legislação, apresenta, no Resumo dos Grupos de Discussões, seis assuntos considerados como principais aspectos discutidos. São eles:

1. Quais são as principais razões para a exclusão de crianças com necessidades educacionais especiais das escolas regulares?

2. Quais são os obstáculos à inclusão?

3. Como pode a educação para necessidades especiais ser financiada; o seu financiamento é um obstáculo à integração?

4. A legislação em separado sobre necessidades especiais é necessária?

5. Ter categorias formais de educação para necessidades especiais ajuda, ou: é necessário?

6. Soluções Estratégicas

As palavras “inclusão” e “integração” foram grifadas para chamar a atenção do leitor à presença dos dois termos numa mesma parte do documento, sugerindo um uso no mínimo complementar entre os mesmos. É bastante sintomática, ao fim dos comentários relativos ao primeiro aspecto citado acima, a afirmação presente na versão inglesa:

 

Mudanças na terminologia são necessárias para refletir as mudanças políticas e práticas; - um exemplo específico é a mudança de “especial” para “inclusiva” (UNESCO, 1994, p. 32)

Também não deve ter sido por acaso que, no terceiro aspecto citado, a primeira resposta diz:

Se o financiamento separado for dado à educação para necessidades especiais, então as escolas especiais irão querer receber mais alunos. Isto constituiria um obstáculo à integração (UNESCO, 1994, p. 33, grifo meu).

Cabe ainda ressaltar, a exemplo do que está sendo aqui colocado, o último parágrafo deste Tema da Declaração – versão inglesa:

Uma questão geral que surgiu dizia respeito à necessidade de se achar uma definição aceitável de educação inclusiva e distingui-la da integração ou mainstreaming. Foi sugerido que um elemento essencial do conceito de inclusão se referia a mudanças sistêmicas no nível da escola e do distrito onde se localiza a escola, bem como no planejamento de oferta educacional no nível do governo local e central. Em contraste, mainstreaming se referia a indivíduos ou pequenos grupos dentro do sistema atual, sem nenhuma assunção necessária de que este sistema deveria ser mudado para tornar a inclusão possível para outras crianças. (UNESCO, 1994, p. 33)

Como se vê, ainda que necessária, a distinção apenas se esboçava na época da elaboração da Declaração. Se, como diz a segunda citação acima, o termo ‘inclusão’ deveria substituir o ‘especial’ da educação, então mais do que nunca fica sem sentido marcar um distanciamento entre integração e inclusão. Se a educação inclusiva for uma substituta da ex-educação especial, seria uma incoerência implementá-la a partir da destruição (ainda que conceitual) de tudo o que se produziu até então em termos de educação especial.

Portanto, é importante marcar as diferenças sim, mas não necessariamente uma ruptura total: como podemos conceber uma educação verdadeiramente inclusiva sem considerarmos os aspectos implícitos na integração? Como incluir sem integrar?

Ou ainda, a exemplo da última citação aqui exposta: como considerar o que há para ser mudado se desconsiderarmos o que tem sido feito? Só podemos partir para a novidade quando consideramos o que há de “velho”. Mas a novidade não pode prescindir do que foi acumulado em termos de experiências passadas. Pelo contrário; ela inova porque se origina (e se modifica a partir) do que há. No caso da referida citação, a modificação se dá no foco: do individual para o sistêmico.

Ainda com base na última citação, podemos dizer que a inclusão se origina da mesma fonte que a integração: a luta pela, e a preocupação com, a democratização e humanização da vida social. E que, além disso, ela ‘rompe’ com o movimento que lhe antecede no curso histórico porque abrange aspectos antes intocados, como a reformulação do sistema e a questão da reciprocidade (CARVALHO, 2000): não se trata mais de simplesmente tolerar o diferente, mas de entrar numa relação de verdadeira troca em que se reconheça que ambas as partes têm a ganhar com os frutos dessa relação.

Assim, cabe à sociedade também se reformular e se engajar no esforço de reciprocidade para que a proposta de inclusão se torne realidade. Mas ainda continua igualmente cabendo aos excluídos empreenderem esforços no sentido da inclusão. Esforços esses que se dão nos planos físico, mental, político, individual, social, organizacional, multidimensional, enfim.

Neste sentido, não caberia dizer que a inclusão ultrapassa ou supera a integração. Ela a abrange e a ressignifica. Nos termos educacionais – e resgatando o foco da presente discussão-, talvez a inspiração para a “solução” do “dilema” possa ser encontrada na própria Declaração, na fala de uma palestrante que abordava o segundo Tema (Perspectivas Escolares), conforme exposto na versão inglesa (UNESCO, 1994, p. 36, grifo meu):

Seja a diversidade do alunado abordada através da adoção de perspectivas instrucionais inovadoras [o que corresponderia a uma perspectiva de cascata, ou integracionista] ou através da perspectiva de alguma reestruturação organizacional [o que se aproximaria mais de uma perspectiva inclusiva], um princípio deveria permanecer primordial: todos os alunos podem alcançar os objetivos educacionais, se forem apropriadamente apoiados. [...] alcançar a igualdade educacional requererá que usemos o melhor do que presentemente conhecemos sobre uma instrução efetiva e sobre a eficácia da escolarização.

Mas, porém, contudo, todavia... A redefinição provocada pela Declaração

Com relação a tudo que foi discutido, cabe ressaltar o que talvez seja o aspecto mais importante deste artigo: a redefinição da educação especial. Independentemente (ou talvez em função) da discussão integração/inclusão, um aspecto fica extremamente claro na Declaração de Salamanca. Consultemos novamente o seu texto. Na Parte 1 (intitulada Educação para Necessidades Especiais: uma visão geral – versão inglesa), sob o título “Novas Oportunidades”, lê-se:

A conferência de Salamanca marcou um novo ponto de partida para milhões de crianças privadas de educação. Ela forneceu uma oportunidade única de colocação da educação para necessidades especiais dentro da estrutura mais ampla do movimento de Educação para Todos, lançado em Jomtiem, Tailândia, em 1990, e ela veio a um tempo em que os líderes mundiais e o sistema das Nações Unidas estavam adotando uma nova visão e dando seus primeiros passos em direção à sua realização. (UNESCO, 1994, p. 15)

E na página seguinte vemos o trecho:

A Conferência de Salamanca, então, proveu a primeira oportunidade internacional significativa para construir com base nessas iniciativas [de Educação para Todos – grifo meu] e para assegurar que as crianças com necessidades educacionais especiais, seja como forem definidas, sejam incluídas de fora [para dentro, no sentido da participação social – minha nota] nos planos nacional e local de forma a abrir as escolas a todas as crianças e assegurar que as escolas se transformem em ambientes prazerosos e desafiadores. (UNESCO, 1994, p. 16)

Na Parte 2 da versão inglesa (como dito anteriormente, ausente na brasileira), com o título de A Conferência, encontramos na página 23 – lida por Victor Ordoñez, representante do Diretor Geral da UNESCO no discurso de abertura - que: As crianças com necessidades educacionais especiais incluem:

a) aquelas que estão atualmente matriculadas na escola primária, mas que, por diversos motivos não progridem adequadamente;

b) aquelas que não estão atualmente matriculadas nas escolas primárias, mas que poderiam estar matriculadas se as escolas respondessem melhor a elas;

c) o grupo relativamente menor de crianças com impedimentos físicos, mentais ou múltiplos mais severos que têm necessidades educacionais especiais complexas que não estão sendo atendidas.

O que essas “falas” têm em comum? A preocupação em redefinir, implícita ou explicitamente, o papel da educação especial no que diz respeito a dois aspectos: o relativo a seu alunado, e o relativo ao seu foco de ação.

Quanto ao alunado, fica claro que, se antes já haviam dúvidas sobre ele sempre ser definido em termo de deficiências, agora essa dúvida dá lugar à certeza de que não há esse limite: no contexto da proposta de educação inclusiva, que por sua vez ressignifica a educação especial dentro da proposta de Educação para Todos, a educação especial deve atender a todos os alunos. Isso implica redimensioná-la para fazer parte do sistema educacional como um todo, o que, por sua vez, justifica os questionamentos, encontrados na própria Declaração, a respeito de sua organização como um sistema à parte, e contendo legislação e medidas legais e financeiras próprias.

Quanto ao foco de ação, a consequência é clara: se o alunado é potencialmente qualquer indivíduo, a oferta educacional não pode estar centrada apenas em torno do lidar com as deficiências. Ela deve ser equacionada no sentido de se buscar o rompimento de barreiras que impeçam o aluno de aprender. Essas barreiras podem se dar em função de aspectos inerentes ao próprio aluno, e/ou em função de aspectos sociais e econômicos, e/ou ainda, em função de uma má organização do próprio sistema educacional que, exagerando suas características de padronização, desconsidera as particularidades de cada caso presente na escola.

É neste sentido que Booth e Ainscow (1998, p.194) se referem à inclusão e exclusão como processos ao invés de eventos, [e as definem respectivamente como] processos de aumento e redução da participação de alunos do currículo, da cultura, das comunidades locais e das escolas regulares. [para eles], Qual- quer escola real, em qualquer tempo, reflete um complexo Inter jogo de forças inclusivas e excludentes, atuando em indivíduos e grupos de alunos.

A significação prática dos aspectos aqui levantados parece clara: há que se reformular (como sempre foi necessário) nossas posturas, nossas concepções, e algumas possíveis formas como nos organizamos para “receber” a todos. Na verdade, cabe mesmo questionar se temos, de fato, nos organizado. Referimo-nos a várias formas de organização. A organização “por dentro”, ou seja, aquela que toca profundamente nas nossas concepções mais arraigadas a respeito do Outro. Ou mesmo, de termos o despojamento para frear nossos primeiros impulsos e refletir sobre se temos, verdadeiramente, alguma concepção consciente a respeito desse Outro diferente. E, se a temos, verificarmos se estamos cristalizados nela, ou se ela é flexível para abranger e abraçar mudanças internas estruturais.

Falamos também da organização social, da qual todos nós somos partes e construtores. Como temos nos posicionado frente a ela? Temos assumido nosso papel de atores sociais, ou temos preferido nos reclinar na poltrona e observar o mundo acontecer como se fôssemos expectadores? Se assim agimos, não apenas reclinamos, como também “declinamos” da perspectiva de transformar, entre outras possibilidades.

CONCLUSÃO

Ao longo deste artigo propusemo-nos a demonstrar que, apesar de aparentemente esgotada, a discussão sobre as diferenças entre os conceitos de integração e inclusão não se encontra encerrada. Para tanto, utilizamo-nos de um dos documentos internacionais mais importantes referentes ao assunto: a versão inglesa da Declaração de Salamanca, que, em seu texto original, apresenta uma série de “confusões” quando, nas palavras de seus palestrantes, verifica-se o uso ora de um, ora de outro termo, por vezes como se fossem a mesma coisa, e por vezes de forma estruturalmente diferenciada.

Por fim, argumentamos que apesar das “confusões” assinaladas, a Declaração de Salamanca representou um passo relevante na história da Educação, na medida em que redimensionou a educação especial em termos de seu alunado e de seu foco de ação. Tanto um quanto outro, agora muito mais abrangentes, implicam em transformações significativas à organização dos sistemas educacionais e das escolas propriamente ditas.

Entre outras coisas, se, como aqui foi mostrado, a partir da Declaração de Salamanca toda educação é “especial” porque deve atender com qualidade a TODO o alunado, é necessário que nos perguntemos a quantas andam os nossos sistemas educacionais e, consequentemente, as nossas escolas, no que diz respeito a vários aspectos. Dentre eles, podemos, a título de reflexão, destacar três dimensões, que nos parecem essenciais:

a) A criação de culturas inclusivas

b) O desenvolvimento de políticas inclusivas

c) A orquestração de práticas de inclusão.

A dimensão da criação de culturas inclusivas em nossos sistemas sociais (educacional, de saúde, etc.) e suas respectivas instituições (hospitalares, escolares etc.) nos remete

...à criação de comunidades estimulantes, seguras, colaboradoras, em que cada um é valorizado, como base para o maior sucesso de todos os alunos. Ela se preocupa com o desenvolvimento de valores inclusivos, compartilhados entre todo o staff, alunos e responsáveis, e que são passados a todos os novos membros da escola. Os princípios derivados nas escolas de culturas inclusivas orientam decisões sobre as políticas e as práticas de cada momento de forma que a aprendizagem de todos seja apoiada através de um processo contínuo de desenvolvimento da escola. (BOOTH, 2000, p.45).

Dois aspectos que norteariam as escolas a descobrirem-se caracterizadas por uma cultura inclusiva, por exemplo, seriam referentes à construção de uma comunidade inclusiva e ao estabelecimento de valores inclusivos nesta comunidade. No que diz respeito à construção de uma comunidade inclusiva, a escola poderia, a título de exemplo, se perguntar: todos se sentem bem-vindos na escola? Os alunos ajudam-se uns aos outros? O staff colabora consigo mesmo? Staff e alunos tratam-se com respeito? Quanto ao estabelecimento dos valores inclusivos, algumas das inúmeras questões que poderiam ser investigadas seriam: Há uma filosofia de inclusão compartilhada pelos pais, alunos e staff da escola? Os alunos são igualmente valorizados? A escola se esforça para minimizar práticas discriminatórias?

Por sua vez, a dimensão do desenvolvimento de políticas inclusivas refere-se à preocupação em

assegurar que a inclusão esteja presente no bojo do desenvolvimento da Escola, permeando todas as políticas, de forma que estas aumentem a aprendizagem e a participação de todos os alunos. Considera-se apoio aquelas atividades que aumentem a capacidade de uma escola em responder à diversidade dos alunos. Todas as formas de apoio são consideradas juntas em uma estrutura única, e são vistas a partir da perspectiva dos alunos e seu desenvolvimento, ao invés de serem vistas da perspectiva da escola ou das estruturas administrativas do órgão responsável pela organização da educação. (BOOTH 2000, p.45).

Aqui, poderíamos citar mais dois aspectos a partir dos quais nortear as investigações sobre inclusão numa dada instituição escolar: o desenvolvimento de uma escola para todos e a organização de apoio à diversidade. Algumas questões que auxiliariam mapear o desenvolvimento de uma escola para todos poderiam ser: todos os novatos do staff são ajudados a se adaptarem à escola? A escola procura admitir todos os alunos de sua área local? A escola agrupa os alunos em turmas de forma que todos sejam valorizados?

Por fim, a dimensão de orquestração das práticas de inclusão liga-se à preocupação em fazer com que as práticas das escolas

[...] reflitam as culturas e políticas de inclusão da escola [e] [...] assegurar que todas as atividades de sala de aula ou extracurriculares encorajem a participação de todos os alunos e baseiem-se em seus conhecimentos e experiências fora da escola. O ensino e o apoio são integrados na orquestração da aprendizagem e na superação de barreiras à aprendizagem e à participação. O staff mobiliza recursos dentro da escola e nas comunidades locais para sustentar uma aprendizagem ativa para todos. (BOOTH, 2000, p.45).

Uma vez mais, pelo menos dois aspectos contribuem para que as escolas investiguem o grau de inclusão presente em suas práticas: a forma como a aprendizagem é orquestrada e a forma como a escola mobiliza recursos. Do primeiro aspecto, algumas questões exemplares incluiriam: as aulas correspondem e atendem à diversidade de alunos ali presentes? As aulas são acessíveis a todos os alunos? As aulas desenvolvem um entendimento sobre diferenças? Os alunos são ativamente envolvidos em sua própria aprendizagem? Os alunos aprendem colaborando uns com os outros? As avaliações encorajam o sucesso de todos os alunos? A disciplina em sala de aula é baseada no respeito mútuo (entre alunos e professores)? Os professores se preocupam em apoiar a aprendizagem e a participação de todos os alunos? O dever de casa contribui para a aprendizagem de todos? Da mesma maneira, o segundo aspecto inclui variadas questões, como por exemplo: os recursos da escola são distribuídos com justiça para apoiar a inclusão? Os recursos da comunidade são conhecidos e utilizados pela escola? As diferenças entre os alunos são vistas e usadas como recursos ao ensino e à aprendizagem, ao invés de serem vistas como “problema”? A escola utiliza os conhecimentos especializados de seu corpo docente para a escola como um todo?

Como podemos perceber, estas dimensões, seus respectivos aspectos e questões usadas como exemplo não se esgotam aqui, se formos investigar com profundidade as instituições, de modo a implementar eficazmente uma proposta de inclusão. Mas elas nos apresentam um caminho inicial, um mapeamento do que já se percorreu no plano institucional e do que a mesma ainda precisa percorrer num dado momento para que se torne cada vez mais inclusiva.

O que não podemos, contudo, é perder a visão processual e interminável da inclusão. Por mais “inclusivas” que as instituições se tornem, haverá sempre a necessidade de um caminhar em direção à inclusão – porque as necessidades para pôr em prática aquilo que identificamos como inclusão hoje, provavelmente serão diferentes amanhã, porque os excluídos de amanhã não serão, necessariamente, os mesmos de hoje, nem os motivos que os excluem serão os mesmos de hoje.

Notas

1 A autora agradece, em especial, aos professores doutores Marcio da Costa, Renato José de Oliveira, Rosita Edler Carvalho e Leny Magalhães Mrech pelas valiosas contribuições ao artigo e pelas animadas e inspiradoras conversas (pessoais, telefônicas e “internáuticas”) sobre os assuntos aqui tratados.

2 Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.

3 Latin-Portuguese Dictionary Site: http://www.meusdicionarios.com.br/ e Latin-English-Latin Java Dictionary with Whitaker’s Wordlist. Site: http:// www.meusdicionarios.com.br/

4 UNESCO/Ministry of Education and Science of Spain (1994) Final Report – World Conference on Special Needs Education: Access and Quality. Salamanca, Spain, 7-10 de junho de 1994.

5 Estas dimensões são extraídas do trabalho desenvolvido por Booth et alii (2000), Index for Inclusion, publicado pela CSIE (Centre for Studies in Inclusive Education) em colaboração com o Centre for Educational Needs da Universidade de Manchester e o Centre for Educational reseacrh, da Universidade de Canterbury Christ Church. Atualmente, versões nacionais do Index para a Inclusão vêm sendo financiadas pela UNESCO, a partir do trabalho de Booth et alii. A autora encontra-se, no presente, envolvida neste trabalho de desenvolvimento de um Index no Brasil. Tal trabalho, produto de um processo a ser desenvolvido no triênio 2001-2004, encontra-se em fase de início. Quaisquer informações que o leitor deseje saber podem ser solicitadas diretamente à autora.

Referências bibliográficas

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BOOTH, T. ; AINSCOW, M. (Eds) From them to Us. London: Routledge, 1998.

CARVALHO, Rosita Edler. Removendo Barreiras para a Aprendizagem. Porto Alegre: Mediação, 2000 ______. Temas em Educação Especial. Rio de Janeiro: WVA, 1998 Dicionário etimológico nova fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.

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