INTERCULTURALIDADE E SURDEZ: PROCESSOS DE INTER-RELAÇÕES
Keli Cristina de Lima1
Rosimeire Pereira de Oliveira2
RESUMO:
Este trabalho tem por objetivo retratar o processo de interculturalidade e surdez, contribuindo para as pesquisas voltadas à educação de surdos. Por longos anos os surdos foram marginalizados, esquecidos pela sociedade majoritária, porém o processo de interculturalidade proporcionou novas conquistas, pois o contato dos sujeitos surdos com os ouvintes deu-lhes autonomia e conhecimento cultural. A língua é o canal propulsor para que o indivíduo se estabeleça em uma determinada cultura. Na comunidade surda a LIBRAS é a ferramenta de comunicação, ela estreita as distâncias linguísticas, colocando uma ponte nas diferenças da “deficiência”. Contudo as trocas culturais acontecem espontaneamente entre os sujeitos, sejam eles usuários de qualquer língua, a aceitação do outro e da cultura dele é o componente principal no desenvolvimento da interculturalidade.
Palavras-Chave: Interculturalidade, Surdez e Cultura.
INTRODUÇÃO
Em nossa sociedade há várias culturas que se entrelaçam, contudo, o objetivo deste artigo é evidenciar e relatar sobre a interculturalidade entre a cultura surda e a ouvinte. O argumento para tal asserção, dá-se pelo fato da cultura surda ainda não ser conhecida por toda a sociedade, ocasionando muitos conflitos e discriminação ao surdo, por muitas vezes serem menosprezados e ridicularizados pelos ouvintes, os quais não reconhecem que eles são uma comunidade que possui cultura. Assim, como forma de divulgação e conscientização, esse artigo tem a pretensão de colocar em debate a interculturalidade existente entre estas duas culturas, registrando o momento de transformação de uma cultura que já foi muito ignorada: a cultura surda. Deixado evidente e registrado o quão é importante para os surdos as trocas com a cultura ouvinte e o quanto é importante para os ouvintes conhecer e aceitar sem inferioridade a cultura surda.
O artigo está fragmentado em tópicos abordando descritivamente os processos de interculturalidade no âmbito da cultura surda e ouvinte. Consonante é uma incitação a reflexão àquelas pessoas que não possuem contato com a comunidade surda, mas que mesmo sem pretensão estão submetidos ao convívio social.
As questões levantadas têm por ruminar o processo de inter-relações entre as culturas citadas. Destarte, temos o propósito de apresentar o assunto com característica provocativa, quebrando possivelmente alguns mitos que envolvem os relacionamentos com a comunidade surda.
INTERCULTURALIDADE: apoio a diversidade cultural
Entre os séculos XX e início do XXI, existiu um foco a quando se referia às diferenças culturais, uma relevância em garantir que as identidades culturais sejam respeitadas e reconhecidas, isso ocorre em vários campos sociais, sendo muito preconizado no campo educacional. Em meio a tantas culturas existentes no nosso mundo, torna-se aceitável a importância dada a essa temática, a fim de divulgar, refletir e debater sobre algo que está intrínseco em nosso ser, a cultura.
Apesar da temática sobre cultura, interculturalidade e diversidade cultural estarem em evidência, o processo de relação entre culturas não está ocorrendo apenas agora, como é tão perceptível através da globalização. Começou a existir desde o início da humanidade, em que ocorriam trocas comerciais no Mediterrâneo e consequentemente o contato entre as pessoas propiciando a interação cultural, mesmo que inconscientemente. (Canclini, 2006). Uma relação restrita no sentido de aceitação e percepção da outra cultura. Porém, os cientistas sociais começam a se atentar para a questão da diversidade cultural a partir da vinda de imigrantes da Ásia, África e América Latina para o continente europeu, alcançando o auge de migração no século XX nos anos setenta e oitenta. Neste momento, os europeus não tiveram outra saída a não ser conviver com diferentes culturas em um mesmo espaço. Não foi um processo pacato, ocorreram conflitos de aceitação de hábitos diferentes, formas de pensar e agir diferentes, no entanto, também foi uma oportunidade de trocas culturais, de aceitação e percepção da existência e de contato com diversas culturas. Em entremeio ao convívio e trocas culturais, ocasionou a formação de outras culturas.
A busca por melhor condição financeira e de vida digna, fuga de guerras e de catástrofes naturais, globalização, entre outros fatores, tem tornado os seres humanos cada vez mais “deslocados” no que tange seu local de origem. Isto abre as portas para que as culturas, que até então estavam tão distantes e desconhecidas, entrem em contato. Além disso, também vigora os meios de comunicação os quais permitem que conheçamos todos os lugares do mundo sem sair de casa. Não só lugares, mas principalmente pessoas.
Atualmente conceituamos este processo como interculturalidade, o qual retoma ao conceito de cultura de forma mais dinâmica, permitindo e representando, com intuito de enriquecimento, o diálogo, as trocas, as partilhas, as interações culturais, de hábitos e costumes que se verificam entre indivíduos de culturas diferentes.
A interculturalidade não é espontânea, nem automática, mas fruto de um processo permanente de diálogo que produz equidade, justiça, inclusão, igualdade e diferença [...] quer dizer re-educação para atrever-se a pensar e a sentir, de novo, à luz de outras tradições culturais. (CANDAU, 2009, p. 110).
Neste tocante, a diversidade cultural deve ser vista como algo positivo, um tesouro da espécie humana e não como algo negativo, que provoca conflitos e divide os grupos sociais. O problema é que aceitar o Outro de forma que é não é algo fácil de fazer, ainda mais quando os conceitos e vivencias são opostos aos da outra cultura.
O contato e a interação de diversas culturas é existente em toda cultura, seja de forma mais visível ou de forma mais sutil, pois, conforme afirma Bhabha (1998, p. 68), “nenhuma cultura é jamais unitária em si mesma, nem simplesmente dualista na relação do Eu com o Outro”. O autor afirma que não há cultura única sem influência de outra e que a necessidade de relacionamento com o Outro se torna inevitáveis essas trocas culturais.
O processo de interculturalidade não tem como intuito unificar as culturas, pelo contrário, prioriza tornar possível a convivência harmoniosa e compartilhada das culturas, vencendo o preconceito e promovendo a inter-relação e aceitação da diferença cultural.
A interculturalidade orienta processos que têm por base o reconhecimento de direitos as diferenças e a luta contra todas as formas de discriminação e desigualdade social. Tenta promover relações dialógicas e igualitárias entre pessoas e grupos que pertencem a universos culturais diferentes trabalhando os conflitos inerentes a esta realidade. Não ignora as relações de poder presentes nas relações sociais e interpessoais. Reconhece e assume os conflitos, procurando as estratégias mais adequadas para enfrentá-los. (CANDAU, 2003 apud CANDAU, 2006, p. 102).
A autora deixa explícito que o respeito às diferenças culturais deve ser priorizado e que as dificuldades e conflitos devem ser resolvidos de forma respeitosa a todas as culturas. Relata também que é um mito dizer que a minha cultura é melhor que a do Outro, não existe cultura melhor ou pior, o que existe são culturas diferentes e que cada uma possui suas especificidades e as pessoas devem ser tratadas de forma igualitária, sem subestimar qualquer grupo por motivos da cultura a qual pertence.
Ao tratarmos sobre grupos culturais, sabe-se que os surdos são pessoas que não ouvem, os quais são caracterizados pela medicina como deficientes, mas que para os estudiosos da área, são grupos que possuem língua e cultura própria. Eles vêm se afirmando cada vez mais, exigindo respeito a sua cultura, lutando pelos seus direitos e conquistando espaço. Como acontece esse processo de interculturalidade do surdo com a cultura ouvinte?
CONCEITOS DE CULTURA E CULTURA SURDA.
O conceito de cultura, assim como a própria sociedade, passa por evoluções ao longo do tempo. À vista disso, sua ligação com o aspecto social se torna intrínseco, uma vez que não é possível dissociá-la dos povos humanos. As variações de conceito são moldadas a partir de sua utilização no cotidiano, e em sua maioria possuem elementos iguais que as basificam. Santos (2006, p. 22-23) salienta que dentro da gama de conceitos existentes hoje em relação à cultura, duas concepções principais podem ser explanadas: a primeira assume um caráter social (realidade), e a segunda retém sua ligação às ideias, práticas e conhecimentos, ambas resultam em um mesmo aspecto: formas de conceber e organizar um grupo e sua realidade.
A realidade é chave mestra para o desenvolvimento de uma cultura, pois é ela o tecido que sustenta suas lógicas. Ao levar isto em questão, a cultura surda também se move de acordo as expressões de seu cotidiano e visibilidade de seus sujeitos, não é uma troca, mas um elo cuja separação inexiste. Diante disso, Souza (2006, p.8) complementa:
Cada realidade cultural tem sua lógica interna, a qual devemos procurar conhecer para que façam sentido as suas práticas, costumes, concepções e as transformações pelas quais estas passam. É preciso relacionar a variedade de procedimentos culturais com os contextos em que são produzidos.
O termo cultura é comumente utilizado na área da surdez como uma alusão à língua de sinais, e a todo mecanismo usado pelo surdo para interagir com o mundo, criando-se um caráter bilíngue, que por muitos foi duramente criticado, pois ao atinar este caráter não há como ter-se como uma cultura dita única, original. Mas há outros críticos que ao contrário destes, assumem que a cultura é dinâmica e não há como dissociar. Segundo Geertz (1989, p. 62): Nossas ideias, nossos valores, nossos atos e até mesmo nossas emoções são, como nosso próprio sistema nervoso, produtos culturais, na verdade produtos manufaturados a partir de tendências, capacidades, disposições com as quais nascemos.
Historicamente, o espaço do surdo - pela carência de compreensão de suas particularidades por parte da sociedade – sempre se manteve às escondidas ou mascarada a estereótipos diversos, ainda, alicerçada à religião por sua autoridade que tinha como principal expressão humana a fala, a ser nesta perspectiva de gaiola, a surdez era enxergada (e ainda o é, sendo diferenciada apenas pela menor intensidade) como sinônimo de inferioridade, estigmatizados, com menor valor social. Isto automaticamente legava aos ouvintes um status de humano superior. Santana (2005):
A exclusão profissional e social dos surdos ainda hoje confirma que a linguagem pode ser fonte de discriminação e de organização social restritiva. Essa discriminação não ocorre apenas quando há diferenças de nacionalidade, cor, perfil socioeconômico ou religião. Entre os surdos e os ouvintes há uma grande diferença que os distingue: a linguagem oral.
Somente em 1960 Stokoe iniciou estudos sobre a Língua de Sinais à nível fonológico/morfológico, e revolucionou a linguística da época, haja vista que os estudos se estreitavam apenas à língua falada (QUADROS; PIZZIO; REZENDE, 2009).
Ao então se adentrar nas identidades surdas, sim, no plural – como diz Perlin (2011), há um caráter mutável envolvido dentro da cultura surda, isto é, dentro desta comunidade há variados níveis de envolvimento e pertencimento, não cabendo assim o título de identidade surda, no singular – é possível encontrar diferentes comportamentos, como aqueles que são surdos mas sentem a necessidade de oralizar para outros surdos o que está sendo sinalizado ou até mesmo surdos que oscilam entre a comunidade surda versus a ouvinte, não se identificando com apenas uma delas.
Por isso, para a sociedade se aprofundar em suas expressões é preciso conhecê-la intimamente em um tom empático, conquanto, trazer o pensamento para a abrangência de suas formas, ou seja, indivíduos apreendem o mundo de formas diferentes resultando em expressões também diferentes. Cameron et al. (apud Lopes, 2001, p. 310) diz “a pessoa é um mosaico intrincado de diferentes potenciais de poder em relações sociais diferentes”. Aceitar o diferente é o primeiro passo à compreensão de suas dificuldades, além de promover a humanização e facilitar o engajamento deste à sociedade. A surdez, assim como o sujeito - tem de ser concebidos como parte integrante, e não como um estrangeiro.
O SUJEITO SURDO E SUAS RELAÇÕES COM O OUTRO
A sociedade contemporânea está em constante transformação, pois as identidades que permeiam os indivíduos o modifica, e estabelece relações com outros sujeitos. Nessa perspectiva a interculturalidade aparece como elemento chave para contribuir com essa formação. Quando as culturas entram em contato, primeiramente há um estranhamento, mas a aceitação do outro provoca as trocas culturais, assim cada pessoa transfere e ao mesmo tempo recebe características advindas de outras culturas.
Diante de tantas transformações aceleradas e radicais, as pessoas tendem a questionar e a ressignificar o sentido da vida individual e coletiva. Surgem novas formas de pensar, novas propostas, novas culturas, novos poderes, novas identidades, e isso tem trazido grandes mudanças no rumo histórico dos objetivos e das modalidades de socialização. (SÁ, 2010 p. 31)
Sá (2010) enfoca as transformações aceleradas que tendem a modificar o indivíduo, moldando-o, surgindo novas formas de pensar e de agir. Produzindo cultura no contato do eu com o outro, mudando a direção do processo de globalização.
Conforme Santos (2006, p. 8) a cultura tem sido uma preocupação vivente nos tempos atuais, pois há necessidade de entender as passagens que vieram a conduzir os grupos humanos com suas ligações presentes e suas perspectivas de futuro.
O desenvolvimento da humanidade está marcado por contatos e conflitos entre modos diferentes de organizar a vida social, de se apropriar dos recursos naturais e transformá-los, de conceber a realidade e expressá-la. A história registra com abundância as transformações por que passam as culturas, seja movida por suas forças internas, seja em consequência desses contatos e conflitos, mais frequentemente por ambos os motivos. (SANTOS, 2006. p. 8)
As relações de cultura alteram as identidades dos sujeitos, “as identidades flutuam no ar, algumas de nossa escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta, é preciso estar em alerta constante para defender as primeiras em relação às últimas” (BAUMAN, 2005, p. 19). Bauman retrata as identidades do mundo globalizado, que ora são líquidas, e ora são solidas, a liquidez está atrelada ao momento em que o indivíduo está vivendo, pois ele assume uma determinada identidade que se desfaz à medida em que o momento desaparece. Já a solidez é a identidade única assumida em diversos contextos sociais.
O processo de interculturalidade tem atravessado a comunidade Surda, pois a transformação de relações dos surdos com os outros sujeitos, ou seja, os falantes provocam trocas culturais, na qual as características culturais dessa sociedade estão presentes nas pessoas surdas.
Uma vez que os preconceitos foram amenizados, tanto dos cidadãos não surdos, assim como dos surdos. A LIBRAS é um traço cultural deste povo, pois é através dela que são estabelecidos os conhecimentos de mundo, e também a comunicação com o Outro, por ser uma língua ainda pouco conhecida, há barreiras na conversação, em consequência disso existem falhas na interação dos surdos com o meio social. (SÁ, 2010).
Um cidadão usuário da LIBRAS que nasceu, ou perdeu a capacidade de ouvir, na maioria das vezes busca ser parecido com o Outro, para que não seja visto como diferente, anormal ou até mesmo deficiente. Por ora este sujeito vive uma identidade que é marcada por conflitos existenciais, segundo Hall (2006, p. 74) “à medida em que as culturas nacionais tornam-se mais expostas a influências, é difícil conservar as identidades culturais intactas ou impedir que elas se tornem enfraquecidas através do bombardeamento e da infiltração cultural”. O surdo é bombardeado por outras culturas, por isso a identidade dele flutua entre um mundo com som e outro sem som, e na maioria dos casos os surdos permeiam nos dois mundos.
Seguindo o mesmo pensamento de Hall, aparece Perlin (2002), na qual cita as diversas identidades surdas surgidas ao longo da história e educação de surdos; identidade flutuante, híbrida, de transição, incompleta, inconformada e surda. Tudo no Outro é considerado como sendo o padrão social, visto que este Outro, fala, interage com meio, não tem problemas de comunicabilidade, recebe todas as informações possíveis pelo canal auditivo, para o surdo o Outro é um humano acentuado, porque ele ouve. (Helen Keler). Para Sá (2010, p. 128) [...] a identidade de um indivíduo se constrói por meio da linguagem [...].
Os Outros ao notarem a presença das comunidades surdas, passam a integrá-las, aceitá-las, procuram aprender a língua desta comunidade. Neste momento acontece as trocas culturais, a interculturalidade, o hibridismo cultural, o indivíduo toma para si as características daquela cultura, sem abandonar os traços culturais já existentes. Os surdos brasileiros vivem em uma sociedade dominada pelos falantes da Língua Portuguesa, mas as relações que eles estabelecem com o meio social define o modo de agir, vestir, pesar e se comunicar.
LÍNGUA: PROCESSO DE INTERAÇÃO CULTURAL
A língua é um fato social comum a todos os processos de comunicação, seja ele oral ou visual gestual, para Sá (2010, p. 128) “A língua é uma atividade em evolução, assim como é a identidade”. A LIBRAS é o principal meio de diálogo das pessoas surdas, assim como também ela estabelece relações de interações culturais e trocas constantes de cultura.
É por meio da língua que o sujeito expressa parte de sua cultua, com as pessoas surdas este fato é mais presente, pois a Língua de Sinais é de modalidade visual, assim a cultura da comunidade surda é repassada através das mãos. Eles constroem na situação comunicativa as histórias vivenciadas, além disso buscam um espaço na sociedade para que todos saibam que não são deficientes e sim usuários de uma outra língua.
Segundo Sá (2010), apude Silva (1999):
A cultura é um campo de produção de significados no qual os diferentes grupos sociais, situados em posições diferentes de poder, lutam pela imposição de seus significados à sociedade mais ampla. A cultura é, nessa concepção, um campo contestado de significação [...]. A cultura é um campo onde se define não só a forma que o mundo dever ter, mas também a forma como as pessoas e os grupos devem ser. A cultura é um jogo de poder.
Seguindo o pensamento de Sá (2010, p. 103) “A cultura é encarada como conflitiva e toda diferença é vista como produto da luta por poderes e significados”. Por muitos anos os Surdos eram considerados seres aculturais, todavia na sociedade contemporânea a aceitação deles como pessoas estrangeiras no próprio país trouxe as mudanças de cultura. Este processo de contato do SURDO com o OUVINTE proporciona a ele reconhecimento como cidadão brasileiro usuário de uma outra língua.
ACEITAÇÃO DO INDIVÍDUO PELAS DIFERENÇAS
A sociedade atual encontra-se em um processo de “despertar” com relação ao sujeito surdo. Um dos fatores percursores desse momento são os próprios surdos, que não se sentem amedrontados e incapacitados diante do “mundo ouvintista”. Estão cada vez mais se profissionalizando e lutando por direitos, fazendo-se ser enxergados e respeitados culturalmente pela sociedade.
Contudo, existe um dilema entre conceder o sujeito surdo como diferente ou não? Skliar (2013, p. 13) diz que entende “a diferença conforme McLaren (1995), não como um espaço retórico – a surdez é uma diferença – mas como uma construção histórica e social, efeito de conflitos sociais, ancorada em práticas de significação e representações compartilhadas entre os surdos”.
Não se deve conceder ao surdo como diferente apoiando em questões físicas, e sim como indivíduos que são diferentes por toda história de lutas e opressões vividas que permeiam até os dias de hoje, e quem os veem como diferentes pela deficiência, não os reconhecem como possuidores de múltiplas identidades, comunidade e cultura.
A diferença aqui referenciada neste artigo, segue o princípio conforme descreve Silva (1998, p. 58): “A identidade cultural ou social é o conjunto dessas características pelas quais os grupos sociais se definem como grupos: aquilo que eles são, entretanto é inseparável daquilo que eles não são, daquelas características que os fazem diferentes de outros grupos”.
Os costumes, hábitos, língua e comportamentos da comunidade surda, fazem com que a sociedade enxergue-o como anormais, por não estarem “adequados ao normal”, por não possuírem os mesmos convívios sociais e culturais da maioria, ou seja, isso fere todos os princípios relacionados aos direitos humanos e ao respeito à diversidade cultural, conforme afirma Skliar (2013, p.21).
A configuração do ser ouvinte pode começar sendo uma simples referência a uma hipotética normalidade, mas se associa rapidamente a uma normalidade referida a audição e a partir dessa, a toda uma sequência de traços de outra ordem discriminatória. Ser ouvinte é ser falante e é, também, ser branco, homem, profissional, letrado, civilizado, etc. Ser surdo, portanto, significa não falar - surdo-mudo - e não ser humano.
As diferenças se pautam com relação à cultura e outros aspectos intrínsecos ao grupo de surdos, ou melhor, a comunidade surda, possuidora de cultura e identidades próprias a qual está em constante transformação, não estática assim como qualquer outra cultura.
Provocar e divulgar cada vez mais para a sociedade, através de mais estudos, pesquisas, reflexões, debates, que os surdos merecem toda compreensão e respeito cultural e que são pessoas, cuja essência humana permite que sejam capazes de se desenvolver psicologicamente e socialmente, que sonham e lutam por uma vida digna, é a melhor formar para quebrar esse preconceito que insiste em desmotivar e excluir o surdo de viver em harmonia com o mundo que o rodeia.
Essa discriminação, velada ou não, causa além de muito transtorno para o surdo, uma negação da comunidade surda pela cultura ouvinte, pois aquele que ri do meu modo de ser e agir pode não ser tão confiável, tornando assim, uma convivência desarmoniosa entre duas culturas em um mesmo espaço. Além disso, segundo Sá (2010) em torno de 90% dos surdos são filhos de pais ouvintes, isso causa uma mistura cultural dentro da própria família. Refletindo toda essa aproximação, fica o seguinte questionamento: Como não respeitar, aceitar e relacionar com uma cultura que está tão presente na nossa?
Portanto, o respeito e conhecimento da cultura alheia, ainda é a melhor forma de viver em harmonia, aceitando que a diferença cultural não é um mal que impede as pessoas de se comunicar e conviver, e sim mais uma oportunidade de trocas e conhecimentos, fazendo-se valer a interculturalidade.
CONCLUSÃO
Estão sempre presentes nas relações sociais, as relações de poder, poder que ouvintes tentam se apropriar do surdo como algo a ser modificado, tornando incessante o desejo por disciplinar e colonizar os surdos, como forma de inseri-los na cultura ouvinte. Todo esse processo faz com que a identidade e cultura surda sejam menosprezadas sendo a cultura ouvinte a primeira, prioritária e melhor. A língua, o jeito de ser e fazer as coisas, são particulares de cada cultura e muitas vezes os surdos são ridicularizados por isso e por muito mais que lhes são próprios.
Há certa ilusão de que a comunidade surda está sendo respeitada e reconhecida culturalmente pela sociedade, pelo fato de muitas pessoas se simpatizarem com a Libras. Porém, somente gostar, achar glamoroso e aprender LIBRAS não significa respeitar a cultura na sua essência, eles precisam ser encarados como seres pensantes, capazes e conscientes dos seus atos e deveres, que assim como toda sociedade procura viver o melhor possível satisfazendo seus desejos e buscando realizações.
É inegável dizer que não ouve mudanças com relação ao que e quem é o sujeito surdo. Muitas conquistas e reconhecimentos acorreram, principalmente referente aos direitos e língua. Reconhecimento estes, que hoje podemos afirmar que possuem cultura e língua própria. Os trabalhos e pesquisas que estão surgindo fazem com que cada vez mais a pessoa surda seja afirmada e reconhecida, que melhore o convívio com os ouvintes. E nisso as trocas culturais vão ocorrendo aos poucos, sem que haja menosprezo de outra cultura, mas sim que haja troca, partilha sem sequer a pretensão de mudar uma ou outra. Importante deixar que os surdos se sintam pertencentes a uma cultura e que possam conviver na sociedade de forma natural e espontânea.
Quando todas as pessoas encararem e compreenderem que nem todos os seres humanos são munidos dos cinco sentidos, de todos os membros, de psique igualitária, possuidores de variadas culturas que se entrelaçam, aí sim teremos a tão desejada aceitação, convivência harmoniosa e respeito cultural. Portanto, quanto mais for pesquisado e divulgado a cultura e as relações interculturais da pessoa surda, menos preconceitos irão existir e o processo de interculturalidade se tornará menos conflituoso.
REFERÊNCIAS
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1Especialista em Metodologia do Ensino da Matemática e da Física, graduada em Matemática e professora da rede particular de ensino de MT.
2Especialista em Planejamento e Docência do Ensino Superior, e Tradução e Interpretação da Libras e graduada em Licenciatura Plena em Letras/Literatura, professora contratada da Seduc/MT.