Alfabetização e Letramento: Um diálogo entre Magda Soares e Paulo Freire na formação de cidadãos críticos
Flávia Michelle Ferreira Oliveira
Antonio Carlos de Lima Oliveira
Karen Joana Gomes Silva Rodrigues
Fabiana Cristina Nobre de Oliveira
Willian Quevedo Tonelli
Introdução
Este trabalho tem como objetivo analisar as concepções de alfabetização e letramento propostas por Magda Soares e Paulo Freire, destacando como essas teorias se complementam na formação de cidadãos críticos e participativos. A partir de uma revisão bibliográfica das principais obras de ambos os autores, buscou-se explorar a alfabetização crítica de Freire, que defende a leitura do mundo como parte fundamental do processo educativo, e o letramento social de Soares, que ressalta a importância do uso da leitura e escrita em contextos práticos e sociais. A análise destaca a complementaridade entre essas abordagens, sugerindo que a alfabetização, para ser completa, deve englobar tanto o domínio técnico do código escrito quanto a capacidade crítica de interpretar e agir sobre a realidade social. A pesquisa reforça a importância de integrar essas teorias na prática pedagógica contemporânea, de modo a promover uma educação que não seja apenas instrucional, mas também emancipadora. Além disso, são propostas recomendações para a reformulação de políticas públicas, com o objetivo de incorporar princípios de alfabetização crítica e letramento, capacitando os alunos a se tornarem agentes transformadores em suas comunidades. Por fim, o trabalho sugere que futuras pesquisas explorem a aplicação dessas ideias em contextos diversos, como na Educação de Jovens e Adultos (EJA) e no contexto da alfabetização digital, ampliando o alcance das contribuições de Soares e Freire para os desafios educacionais contemporâneos.
A alfabetização e o letramento são pilares fundamentais para uma educação transformadora e emancipadora. No Brasil, esses processos ultrapassam a mera aquisição técnica da leitura e escrita, sendo essenciais para formar sujeitos críticos e participativos. Em um país com profundas desigualdades, a alfabetização, associada ao letramento, torna-se desafiadora e requer um exame cuidadoso das teorias que a embasam.
Para este estudo, adotou-se a revisão bibliográfica conforme Lakatos e Marconi (2003). A metodologia baseia-se em uma análise das obras de Magda Soares e Paulo Freire, explorando como suas concepções sobre alfabetização e letramento se complementam. Essa revisão visa identificar pontos de convergência entre a abordagem técnico-conceitual de Soares e a perspectiva crítica e política de Freire.
Magda Soares distingue alfabetização (domínio do sistema alfabético) de letramento (uso social da leitura e escrita), defendendo que ambos são indissociáveis (SOARES, 2003). Paulo Freire, por sua vez, vê a alfabetização como um processo político e de conscientização, inserindo a leitura do mundo no ato de alfabetizar (FREIRE, 1987). Para Freire, alfabetizar é possibilitar ao aluno uma leitura crítica da realidade, rompendo com a passividade tradicional.
Ao combinar essas perspectivas, fica claro que alfabetização e letramento devem ser integrados, permitindo que o ensino da leitura e escrita forme cidadãos críticos e ativos. O objetivo central deste trabalho é analisar como as teorias de Freire e Soares se complementam na construção de uma educação que promova não apenas o domínio do código escrito, mas também o desenvolvimento de uma consciência crítica e socialmente engajada.
O presente estudo espera contribuir para o aprimoramento das práticas pedagógicas, oferecendo uma base teórica sólida para educadores. Propõe-se um modelo pedagógico que integre alfabetização técnica com formação crítica, capacitando os alunos a usar a leitura e escrita como instrumentos de transformação social.
Este estudo é relevante em um contexto de crises sociais e políticas, onde a educação deve desempenhar um papel transformador. Soares e Freire oferecem bases teóricas essenciais para enfrentar desafios como a desinformação e a exclusão educacional. O diálogo entre seus pensamentos proporciona uma prática pedagógica emancipadora, permitindo a formação de cidadãos capazes de ler o mundo e agir de maneira crítica e consciente.
Referencial Teórico
Conceitos de Alfabetização e Letramento em Magda Soares
A produção intelectual de Magda Soares, especialmente suas obras Alfabetização e Letramento (2003) e Letramento e Alfabetização: As Muitas Facetas (2004), oferece uma contribuição essencial para o entendimento e desenvolvimento das práticas educacionais no Brasil. Nesses trabalhos, Soares busca distinguir e, ao mesmo tempo, articular dois conceitos fundamentais no campo da educação: alfabetização e letramento. Embora relacionados, esses conceitos possuem implicações diferenciadas no processo de formação dos sujeitos, impactando diretamente o modo como a educação é concebida e implementada nas salas de aula.
Para Soares (2003), a alfabetização refere-se ao domínio técnico do código alfabético, ou seja, o processo de ensino e aprendizagem que permite ao indivíduo ler e escrever a partir do entendimento dos princípios da representação gráfica das palavras. Trata-se, portanto, de um processo de natureza cognitiva e instrumental, cujo objetivo é que o educando adquira a capacidade de decodificar o sistema escrito de uma língua. Em seu conceito, alfabetização está vinculada à instrução formal, geralmente associada aos primeiros anos do ensino escolar.
O letramento, por outro lado, extrapola o domínio da técnica de leitura e escrita, estando relacionado às práticas sociais que envolvem o uso dessas habilidades em diferentes contextos de comunicação e interação social. Conforme Soares (2004), o letramento inclui a utilização prática da linguagem escrita nas esferas públicas e privadas da vida cotidiana, sendo assim uma prática social. Portanto, o letramento envolve tanto a dimensão funcional da leitura e da escrita quanto a capacidade crítica de interpretar e interagir com os textos, situando-se no campo da experiência cultural e comunicacional do indivíduo.
Um ponto central nas obras de Soares é sua defesa da indissociabilidade entre alfabetização e letramento. Para a autora, embora seja possível conceitualmente diferenciá-los, ambos devem ocorrer de maneira integrada no processo educativo. Não se trata apenas de ensinar o aluno a decodificar palavras, mas de capacitá-lo a utilizar essa habilidade para se inserir nas práticas sociais que envolvem a escrita. Nesse sentido, a alfabetização, ao ser desconectada das práticas de letramento, corre o risco de ser limitada a uma atividade mecânica, desprovida de significado social e cultural.
Ao abordar essa indissociabilidade, Soares (2004) argumenta que a alfabetização só será plena se estiver imersa no contexto do letramento, uma vez que esse processo é o que possibilita ao indivíduo o uso efetivo da leitura e escrita em sua vida cotidiana e no exercício da cidadania. Essa visão impacta diretamente a formação de sujeitos críticos, pois o letramento crítico permite que o aluno não apenas compreenda e use o sistema escrito, mas também participe ativamente da construção e interpretação de sentidos dentro de seu meio social. Essa abordagem defende que, ao alfabetizar, a escola deve também letrar, integrando os processos de aprendizado do código escrito com a capacidade de agir de forma crítica no mundo letrado.
Portanto, a articulação entre alfabetização e letramento, tal como proposta por Soares, torna-se fundamental para uma educação que visa à formação de cidadãos autônomos e críticos, preparados não apenas para decodificar textos, mas para ler e interpretar o mundo por meio das diversas práticas sociais da escrita. Dessa forma, ao ampliar o conceito de alfabetização, incorporando o letramento, Soares redefine o papel da educação no processo de transformação social e cultural, apontando para a necessidade de uma prática pedagógica que promova a inclusão e a emancipação dos sujeitos educados.
Diálogo entre Soares e Freire
O diálogo entre as concepções de Magda Soares e Paulo Freire revela-se profícuo para a construção de uma prática pedagógica que vise à formação de sujeitos críticos e socialmente engajados. Embora as abordagens desses dois pensadores se desenvolvam em contextos teóricos distintos, há paralelos importantes que podem ser traçados entre suas visões sobre alfabetização e letramento, sobretudo no que tange ao papel social e político desses processos.
Enquanto Magda Soares concentra-se na dimensão social do letramento, entendendo-o como o uso prático da leitura e escrita nas esferas de convivência social, Paulo Freire enfatiza a leitura crítica do mundo, que antecede a leitura da palavra e está intrinsecamente ligada à conscientização dos oprimidos sobre sua realidade social e histórica. Soares (2003) propõe que o letramento envolve não apenas a capacidade de ler e escrever, mas o uso dessas habilidades em contextos concretos, possibilitando que o sujeito participe das práticas sociais que requerem o domínio da escrita. Por outro lado, Freire (1987) amplia esse entendimento ao argumentar que o ato de ler o mundo é o ponto de partida para que o educando se reconheça como sujeito ativo, capaz de intervir em sua realidade.
O ponto de convergência entre ambos está na percepção de que a alfabetização não pode ser limitada ao domínio técnico do código escrito. Freire, ao propor sua alfabetização crítica, complementa a abordagem de Soares ao reforçar que o letramento não é apenas um fim funcional, mas um meio para a conscientização e emancipação. O conceito de letramento em Soares, que enfatiza o uso social da leitura e escrita, dialoga diretamente com a proposta freiriana de que a alfabetização deve servir como ferramenta de libertação. Para Freire (1987), o processo de alfabetização crítica não se restringe à decodificação da escrita, mas envolve a leitura das relações de poder e de opressão que permeiam a sociedade. Assim, pode-se afirmar que a alfabetização crítica de Freire complementa o letramento de Soares ao inserir a prática social da leitura e escrita em um contexto de luta e conscientização política.
Um aspecto central para ambos os autores é o papel do educador. Soares e Freire convergem na visão de que o professor não pode ser apenas um transmissor de conhecimento, mas deve atuar como mediador entre o aluno e o mundo. No contexto do letramento, conforme Soares (2004), o professor deve proporcionar aos alunos oportunidades de usar a leitura e a escrita em situações significativas, que envolvam a participação ativa do sujeito nas práticas sociais que demandam o uso da língua escrita. Da mesma forma, Freire (1987) defende que o educador deve criar condições para que o educando desenvolva uma leitura crítica do mundo, promovendo o diálogo e a problematização da realidade. Nesse sentido, o papel do educador, para ambos os autores, transcende a mera instrução técnica e envolve a formação de sujeitos críticos e conscientes.
A mediação pedagógica, no entanto, deve ser compreendida como um processo dialógico. Para Freire (1987), o educador e o educando são co-construtores do conhecimento, e o ensino não pode ser imposto, mas sim construído em conjunto por meio do diálogo e da reflexão crítica sobre a realidade. Nesse aspecto, a pedagogia dialógica de Freire complementa a prática do letramento de Soares, pois ambos defendem que o conhecimento se dá na interação entre sujeito e mundo. O educador, portanto, deve possibilitar que o aluno não apenas aprenda a ler e escrever, mas também compreenda os contextos sociais, políticos e culturais nos quais essa prática se insere, transformando-se em agente de mudança.
A partir do que foi desenvolvido, compreende-se que, a articulação entre o letramento de Soares e a alfabetização crítica de Freire oferece um caminho pedagógico voltado para a transformação social, no qual o ato de ensinar a ler e escrever está intrinsecamente ligado à formação de sujeitos críticos. O educador, nesse contexto, atua como facilitador de processos que integram a capacidade técnica com a prática crítica, permitindo que os educandos se apropriem da linguagem escrita de forma consciente e socialmente engajada.
A análise das concepções de alfabetização e letramento em Magda Soares e Paulo Freire revela uma complementaridade significativa entre seus pensamentos. Enquanto Soares destaca o letramento como prática social e defende a indissociabilidade entre alfabetização e o uso da escrita em contextos concretos, Freire enfatiza a alfabetização crítica, que transcende o domínio técnico e promove a leitura crítica do mundo. Ambos autores compartilham a visão de que o processo educativo não deve ser limitado à mera decodificação do código escrito, mas deve, sobretudo, capacitar os educandos a refletirem criticamente sobre suas realidades e a agirem sobre elas. A combinação dessas teorias resulta em uma pedagogia que visa à formação de sujeitos críticos e socialmente conscientes, ampliando o escopo da alfabetização para além do domínio da língua escrita, integrando-a à transformação social.
Dessa forma, é crucial integrar as teorias de Freire e Soares na prática educativa contemporânea. Essa integração permite que o processo de ensino e aprendizagem se torne não apenas uma via para o desenvolvimento técnico, mas também uma ferramenta para a construção de uma cidadania ativa e transformadora. Na medida em que a alfabetização crítica de Freire oferece uma abordagem emancipadora, o letramento social de Soares complementa esse processo, fornecendo aos educandos os instrumentos necessários para navegar no mundo letrado, participando das práticas sociais que envolvem a leitura e a escrita. Tal abordagem é fundamental para que a educação desempenhe seu papel como prática da liberdade, como preconizado por Freire.
Com base nas teorias de Soares e Freire, é recomendável que as práticas pedagógicas sejam desenvolvidas com um enfoque que integre a alfabetização crítica e o letramento social. Os educadores devem ser incentivados a promover, em suas salas de aula, uma educação que ultrapasse o ensino técnico, incorporando atividades que relacionem a leitura e a escrita com as realidades sociais dos alunos. As práticas pedagógicas precisam oferecer aos estudantes a oportunidade de ler criticamente o mundo, ao mesmo tempo em que utilizam a escrita de forma ativa em contextos reais, promovendo assim uma compreensão mais profunda e crítica da sociedade.
Além disso, sugere-se que as políticas educacionais sejam reformuladas para integrar de maneira mais ampla as propostas de Freire e Soares. As políticas de alfabetização no Brasil devem incluir, em seus fundamentos, a formação crítica e social dos alunos, estimulando a participação ativa e o engajamento com o mundo letrado. Isso implica em repensar currículos, promover formações continuadas para os professores e garantir que os programas educacionais estejam alinhados com uma visão mais crítica e emancipadora da alfabetização.
Futuras pesquisas podem se concentrar em explorar a implementação prática das ideias de Freire e Soares em contextos variados. A Educação de Jovens e Adultos (EJA) representa um campo frutífero para a aplicação dessas teorias, dado que muitos desses estudantes têm trajetórias de vida marcadas pela exclusão social e educacional, tornando a alfabetização crítica e o letramento social ainda mais urgentes. Além disso, outro campo a ser explorado é o contexto da alfabetização digital, considerando o impacto crescente das tecnologias na educação. A aplicação dos princípios freirianos de conscientização e das práticas de letramento de Soares pode oferecer ferramentas essenciais para que os estudantes adquiram uma leitura crítica do mundo digital.
Em suma, a combinação das teorias de Freire e Soares proporciona um caminho promissor para a criação de práticas pedagógicas que não apenas ensinam a ler e escrever, mas formam cidadãos conscientes de seu papel na sociedade, capacitados a agir sobre suas realidades e a promover transformações sociais.
Referências
BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi; ROSA, Ester Calland de Sousa (orgs.). Leitura e Produção de Textos na Alfabetização. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
DICKMANN, Ivo; DICKMANN, Ivanio. Paulo Freire: Método e Didática. Chapecó: Livrologia, 2020.
FREIRE, Paulo. A Importância do Ato de Ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados, Cortez, 1989.
FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. São Paulo: Paz e Terra, 1979.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia científica. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
LEITE, Vanessa. Fake News e a Educação Crítica: A Contribuição de Paulo Freire para a Era Digital. In: PADILHA, Paulo Roberto; ABREU, Janaina (orgs.). Paulo Freire em Tempos de Fake News: Artigos e Projetos de Intervenção Produzidos Durante o Curso da EaD Freiriana do Instituto Paulo Freire. São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2019.
MACIEL, Francisca; CAFIERO, Delaine; RANGEL, Egon de Oliveira (orgs.). Cartas para Magda. São Paulo: Parábola Editorial, 2021.
NAHUR, Marcius Tadeu Maciel; SILVA, Jefferson da. Educação e Cultura: Um Diálogo entre Tomás de Aquino e Paulo Freire para os Tempos Atuais. Revista Filosofia e Educação, v. 12, n. 2, p. 1240-1270, 2020.
PADILHA, Paulo Roberto; ABREU, Janaina (orgs.). Paulo Freire em Tempos de Fake News: Artigos e Projetos de Intervenção Produzidos Durante o Curso da EaD Freiriana do Instituto Paulo Freire. São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2019.
RESENDE, Maria Aparecida; RESENDE, Tamiris Cristhina. Paulo Freire e Magda Soares: Perspectivas sobre Alfabetização e Letramento. Revista Linguagens & Letramentos, v. 5, n. 1, Cajazeiras: Paraíba, 2020.
SOARES, Magda. Alfabetização e Letramento na EJA. São Paulo: Contexto, 2010.
SOARES, Magda. Letramento e Alfabetização: As Muitas Facetas. Revista Brasileira de Educação, n. 25, p. 5-16, jan./fev./mar./abr. 2004.
SOARES, Magda. Alfabetização e Letramento. São Paulo: Contexto, 2003.
SOARES, Magda. Entrevista com Magda Soares: O problema não é o método de alfabetização, é alfabetizar sem método. Cadernos Cenpec, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 143-162, jan./jun. 2016.
SOARES, Magda. O que é Letramento e Alfabetização. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
VERNIZZI, Mario Alberto Zambrana; SANTANA, Rogério Joaquim; ALVES, Clederson Passos; MARQUES, André Benito Fentanes Alvarez; ZEFERINO JUNIOR, Jorge Luiz de Almeida. Alfabetização Midiática Informacional na Prática Docente. São Paulo: PUC-SP, 2020.