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A Bruxinha Contemporânea reinventada por Eva Furnari

Camila Oliveira De Marchi

Frádia Cícera de Castro Tsukamott

Lucinete do Carmo Viana de Campos

Roselene de Jesus Motta da Silva

Thelma Pires Geronimo Motta

 

DOI: 10.5281/zenodo.12734890

 

 

Considerações iniciais

 

O presente artigo tem como objetivo analisar a trajetória da personagem bruxa na obra “Bruxinha e Frederico”, de Eva Furnari. Porém, é importante ressaltar que a personagem principal não se enquadra propriamente na ideia que temos de uma bruxa, ou seja, aquele arquétipo bruxa má e perversa, como a da bruxa que faz feitiços, empreende uma longa jornada para fazer o mal e prejudicar os mais fracos; mas sim a de uma bruxa “às avessas”, devido às atitudes que demonstra ao longo da narrativa. Portanto, a questão que norteará esse artigo é a seguinte: “A bruxinha atrapalhada pode ser considerado uma bruxa contemporânea?”. Com base em pesquisa bibliográfica, tentar-se-á responder a essa questão, traçando algumas linhas que norteiam a minha compreensão sobre a trajetória dessa bruxinha.

Ver/olhar/ler livros para crianças parece ser uma ação simples. Como tantos outros artefatos e produtos destinados ao mundo da infância, a literatura contemporânea produz objetos que são considerados como facilmente apreensíveis, já que pertencem ao território do conhecido, do familiar. Essa perspectiva inicial pode ser explicada desde uma concepção de infância como um período em que predomina o espaço seguro, ou o ingênuo encantamento que nasce do sonho e da fantasia. Porém, uma atenção maior sobre o que parece ser simples e natural pode gerar dúvidas, desde a condição de ser criança na atualidade, aos objetos a ela destinados. Considera-se que infância e seus objetos são produtos da cultura e, como tal, constituem-se numa construção complexa e intencional, gerada num determinado contexto e carregada de efeitos de sentidos. A cultura da infância, ou o modo de ser criança, constitui-se na relação social, nas interações e na significação dos universos simbólicos compartilhados.

O acesso à informação modifica-se, primeiro pela invenção da imprensa, e atualmente se torna quase que irrestrito, pela ação das mídias.

A edição de livros para crianças, nas últimas décadas, diversificou-se e expandiu os modos de produzir e apresentar esse produto cultural. As técnicas de ilustração, os materiais para sua confecção, o projeto gráfico, a utilização de recursos interativos, como a adição de elementos sonoros e/ou táteis, entre tantos outros meios, resultam num objeto bem mais complexo daquele de épocas passadas.

 

 

Conhecendo a autora

 

Sua família mudou-se para o Brasil em 1950, quando Eva tinha dois anos. Cresceu na nova pátria, formando-se em Arquitetura pela Universidade de São Paulo, e a partir de 1976 dedicou-se inicialmente a livros com ilustrações, sem texto. Como autora infanto-juvenil e como ilustradora recebeu o Prêmio Jabuti, nos anos de 1986, 1991, 1993, 1995, 1998 e 2006. Em 2002 foi escolhida para ilustrar a re-edição de seis livros da obra infantil de Érico Veríssimo.

A obra de Furnari, composta essencialmente de pequenos livros, é uma das mais profícuas na Literatura infantil brasileira atual. Como a própria autora revelou, numa entrevista, a ilustração precedeu a produção literária - mas foi nesta última que veio efetivamente a se destacar.

 

 

Situando a obra

 

A obra foi escrita em 2001. Nela, a autora dá cor às palavras, fazendo com que o resultado da composição surja como um atrativo a mais para o pequeno leitor. A ilustração faz com que o texto escrito encontre na linguagem visual um reflexo da narrativa. Esse conjunto ativa o encantamento da história que passa a constituir sentidos mais palpáveis no universo plural do processo de construção do mundo infantil. Dessa forma, a criança encontra no livro as identificações necessárias à inter-relação do sujeito com o objeto de desejo, no caso, o texto.

Eva Furnari, ao longo de sua carreira, escreve vários livros destinados à literatura infantil, todos ilustrados por ela mesma. Seus personagens são sempre irreverentes e com características próprias que ela cria para cada um, diferenciando o bem do mau, confundindo e invertendo muitos valores que foram criados pela sociedade atual.

Segundo Odilon Moraes (2007): “A criança logo percebe que no jogo de formas e cores de um livro ilustrado há uma sequência a ser seguida. Ela tende a se orientar por essa ordem ao ler as imagens, mesmo sem ter noção nenhuma do que seja o sentido alfabético.”

Desta forma o livro “Bruxinha e Frederico”, sendo trabalhado na Educação Infantil, tem despertado grande interesse das crianças, pois mesmo sem saber ler convencionalmente , eles realizam a leitura sendo guiadas pelas imagens, sendo que, frequentemente, criam e recriam suas histórias a partir das histórias da bruxinha.

Algumas crianças não aceitam o fato de ter uma bruxinha boa, acreditam que ela não pode ser bruxa, mas sim uma fada, mesmo estando caracterizada com trajes de uma bruxa. Essa dificuldade de identificação pode ser explicada pelo imaginário popular ao longo dos tempos que já convencionou que bruxa tem que ser necessariamente má. Não fosse dessa forma, como o livro infantil poderia ter pregado o maniqueismo social? Eva Furnari, desta forma, surge como um dos casos, dentre outros escritores contemporâneos, que encontram, na literatura, o formato mais adequado para promover rupturas com os padrões estéticos e socialmente estratificados.

 

 

Analisando a trajetória da bruxinha

 

Entre as personagens mais significativas da obra analisada está a “Bruxinha”, uma personagem atrapalhada e muito engraçada que faz feitiços e sempre se mete em encrencas malucas.

A autora recria a personagem bruxa, de tal forma, que deixa de lado a imagem da bruxa da Idade Média: má, perversa e vingativa como a bruxa do conto “A Bela Adormecida” de Charles Perrault, que contou e publicou alguns contos, especialmente para as crianças da corte real, narrando-os em finos versos ou prosa burilada e fazendo com que todos se acompanhassem de uma moral.

Essa figura da bruxa aparece em muitas das obras de Eva Furnari, entre elas a “A Bruxinha atrapalhada”, “A bruxinha e o Godofredo”, “Bruxinha e Frederico”, entre outras. A personagem é construída de tal forma que, aos olhos das crianças, é simplesmente fantástica, pois faz coisas que jamais elas conseguiriam fazer, tem poderes, e alguns amigos bem diferentes. É o tipo de personagem que faz com que as crianças sonham acordadas, desta forma, havendo crescente identificação entre elas.

Segundo Ana Maria Machado, algumas boas obras da literatura infantil contemporânea, seguem essa vertente da “recontação” do conto tradicional em que o texto contemporâneo re-lê a tradição, transformando-o, em um conto novo, perfeitamente adaptável ao momento e às experiências vivenciais do leitor infantil.

No livro “Bruxinha e Frederico” (2001), a autora Eva Furnari narra sobre um mocorongo, o Frederico, que todos sabem que existe, porém ninguém vê, mora em uma floresta do tipo especial, cheia de mufins, bulhufas e gundus. Mocorongos são aqueles pequenos seres habitantes das florestas, ninguém vê, porque eles são tímidos e muito pequenos que podem se esconder atrás de uma folha ou mesmo de uma flor. Os mufins, bulhufas e gunduns são as melhores guloseimas que uma criança pode imaginar, elementos que completam o mundo infantil das possibilidades impossíveis, do alargamento dos limites e outras “perversões” não permitidas pelos adultos. Funciona aí a subversão da ordem que, combinada à submissão da própria narrativa, restaura a capacidade de transcender os estreitos limites de uma existência autocentrada. Pode-se compreender isso pela visão de Bruno Bettelheim ao tratar do estímulo à imaginação, ingrediente de desenvolvimento do intelecto, da clareza das emoções e das relações como os aspectos da personalidade da criança (BETTELHEIM, 1980, p. 13).

Frederico é do tipo de mocorongo, amarelo, fofo e barrigudo, sua casa é uma toca no tronco de uma árvore florida, tendo como o melhor da toca, a cama, que tem um colchão macio feito de penas de asas de anjo e cobertor feito de lã de carneirinhos dos sonhos. A partir daí, já se pode conhecer sobre esse mundo imaginário, com criaturas diferentes e boas, criado para simbolizar a luta entre o bem e o mau, num convívio, muitas vezes conflitante, semelhante àqueles enfrentados na vida real, com a diferença que, ao final, a bruxinha vence. Essa ambivalência de sentimentos do mundo ficcional estabelece bases para acriança compreender a diferença entre as pessoas do seu mundo e todos tem que fazer opções na vida. Essa decisão básica contribui para o amadurecimento da criança. Ainda citando Bettelheim:

A criança se identifica com o bom herói não por causa de sua bondade, mas porque a condição do herói lhe traz um profundo apelo positivo. A questão para a criança não é “Será que quero ser bom?” mas “Com quem quero parecer?” A criança decide isso na base de se projetar calorosamente num personagem. Se esta figura é uma pessoa muito boa, então a criança decide que quer ser boa também (p. 18), (grifos meus).

O apelo positivo que faz parte do processo de decisão da criança produz os conflitos internos originários das próprias ansiedades existenciais e dilemas do ser humano, ao mesmo tempo em que é no próprio conto que a criança encontrará as soluções no seu nível de compreensão.

Esse mundo imaginário, rico em detalhes faz com que a criança possa se envolver em fantasias otimistas. Embora a fantasia seja irreal, as boas sensações que ela nos dá a respeito de nós mesmos e de nosso futuro são reais, e essas boas sensações reais são aquilo de que necessitamos para nos sustentar.

Continuando com a história... tudo andava na mais perfeita ordem, até que apareceu a bruxa Pafúncia, uma bruxa má, muito que enfeitiçou toda a floresta onde morava Frederico, o mocorongo. Num primeiro momento ele ficou escondido e paralisado embaixo de um cobertor, no segundo momento ele só fez chorar, e algumas vezes xingava a malvada bruxa de todos os nomes feios que ele conhecia, mas passado três dias e três noites depois, acabou criando coragem e saiu de sua toca, ficou chocado, sentindo um aperto no coração, sua floresta encantada estava destruída. O grande exagero que a grande maioria das crianças gosta é que Frederico chorou tanto que suas lágrimas dariam para encher um oceano. Seus amigos tinham sumido, suas guloseimas tinham ficado mofadas. Porém o pior de tudo foi que o feitiço da bruxa não tinha acabado, as gotinhas de lágrimas, que caíam de seus olhos, transformava tudo que tocava em pedras.

Para a psicanálise, quando uma criança por qualquer motivo que seja, é incapaz de imaginar com otimismo o seu futuro, ocorre uma parada no seu desenvolvimento. É o que aconteceu com o Frederico.

Ainda nos respaldando na Psicanálise, os conflitos existenciais projetam para uma visão mais globalizada do mundo:

Justamente quando a criança começa a ser tentada pelo mundo mais vasto, que a incita a mover-se para além do círculo limitado que a abarca juntamente com seus pais, seus desapontamentos edipianos a induzem a desligar-se um pouco destes, que até então eram a única fonte de seu sustento físico e psicológico. Quando isso acontece, a criança se torna capaz de obter alguma satisfação emocional de pessoas que não fazem parte de sua família imediata, o que compensa até certo ponto sua desilusão com os pais. (BETTELHEIM, op. cit., p.177).

Nesse sentido, a personagem infantil Frederico (mocorongo) encontra uma Bruxinha, que de tão atrapalhada que é, parece ser boa. Ai se dá a identificação pois ambos são atrapalhados, desajeitados e juntos vão tentar encontrar um jeito de desfazer os feitiços da bruxa má e perversa.

Já a figura da bruxa Pafúncia, é caracterizada pela maldade, perversidade e também pelos feitiços que ela lança na floresta, pela vassoura, e também pelo fato dela sempre aparecer em uma noite de lua cheia. Essa tal bruxa é má por natureza, faz feitiços sempre prejudicando aos demais sem ter motivo, fazer o mau simplesmente por fazer.

Mas a Bruxinha apareceu e resolveu ajudá-lo, pois ela estava justamente procurando essa tal bruxa, pois sua varinha tinha sido enfeitiçada pela malvada e ela tinha perdido os seus poderes. Os dois resolveram procurar o castelo da tal bruxa, para se livrar dos feitiços, ambos tiveram que enfrentar o medo de entrar em um lugar desconhecido, pois lá no castelo não teriam que enfrentar a bruxa, mas apenas iriam olhar o livro de feitiços e descobrir como desfazer os encantamentos. No final conseguiram desfazer os feitiços da tal bruxa. A floresta voltou a ser divina e maravilhosa com seus pequenos seres, e a Bruxinha e Frederico comemoram a vitória com muita alegria no coração.

Nessa perspectiva da abordagem do conto e apoiada na posição psicanalítica, o conto de fadas diz que “embora existam bruxas, não se deve nunca esquecer que também existem boas fadas, que são muito mais poderosas” (BETTELHEIM, op. cit., p.101). Desta forma é bem provável que uma história sobre uma criança que vence um espírito malvado, pela esperteza, tenha dado coragem a muitas crianças que tenham acesso a tais contos, porque torna suportáveis as frustrações que são experimentadas na realidade.

 

 

Considerações finais

 

Nos contos tradicionais, a fada é a personagem boa, enquanto a bruxa é má, prejudicando os demais.

A Bruxinha desmente esse padrão, pois a protagonista das histórias curtas de Eva Furnari, suscita a simpatia do leitor que experimenta com ela a amizade. Essa personagem, se parece mais com uma “fada madrinha”, do que com uma bruxa, e o Frederico se assemelha mas com uma criança, na primeira infância, com seus medos e anseios e juntos vão tentar vencer o mal.

A obra, Bruxinha e Frederico, de Eva Furnari, retrata a maldade de uma bruxa má Pafúncia que acaba sendo enfrentado por uma outra bruxa. O tema do conflito se mostra através de um dos dois (Frederico e Bruxinha) venceram o medo e ao entrar no castelo da bruxa má e fazer um feitiço que possa acabar de uma vez com as maldades da bruxa Pafúncia.

A “bruxa” é apresentada de duas formas uma e perversa e outra atrapalhada e boazinha, mas que de alguma forma se enfrentam na narrativa, que uma busca uma salvação para a floresta encantada do seu amigo Frederico. O Frederico inicia a narrativa como um mocorongo medroso, pois é inseguro, que tem uma grande frustração. Mas evolui na sua trajetória heroica ao encontrar com a Bruxinha para buscar um encantamento que pudesse desfazer o feitiço.

Isso é frequentemente vivenciado pelas crianças, pois quando as mesmas sofrem frustrações, a decepção e o desespero da criança em momentos de derrota total ou parcial pode ser visto em seus acessos de mau humor, que são a expressão visível da convicção de que ela nada pode fazer para melhorar a situação, porém a imaginação (o poder de fantasiar) traz soluções favoráveis segundo Bruno Bettelheim, para as suas dificuldades presentes, o mau humor desaparece pois uma vez instalada a esperança no futuro, as dificuldades se tornam suportáveis.

Para o leitor, esta obra faz pensar sobre a consciência crítica, o sentido de justiça e a capacidade de refletir sobre a questão da maldade, bondade e amizade. Entende-se que a autora quis transmitir ao longo dessa narrativa, propostas de que o mau e o bem existe, que o medo é verdadeiro, mas que pode ser enfrentado, de maneira implícita e agradável.

E de acordo com o livro a Psicanálise dos Contos de Fadas, de Bruno Bettelheim Somente a fantasia e a esperança exagerada das realizações futuras podem equilibrar os pratos da balança , de modo a que ela possa prosseguir vivendo e lutando”.

Nesse sentido a bruxinha pode ser analisada e discutida com um bruxa contemporânea, que não medo e nem assombra crianças, mas as ajuda a fantasiar e criar soluções para as dificuldades que são vivenciadas por ela no decorrer da sua infância. Então, a releitura da tradição, embora não signifique abandono total dela, acrescenta novos olhares: uma bruxa meio fada que realiza desejos, vive aventuras e ainda conhece a amizade.

 

 

Referências bibliográficas

 

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1997. BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

 

COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico da literatura infantil e juvenil brasileira. 5 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2006.

 

FURNARI, Eva. Bruxinha e Frederico. Rio de Janeiro: Global, 2001.

 

KHÉDE, Sônia Salomão. Personagens da Literatura Infanto-Juvenil. São Paulo: Ática, 1986.

 

MACHADO. Ana Maria. Como e por que ler os Clássicos universais desde cedo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.

 

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1982.