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O desenvolvimento do Psiquismo a partir do jogo de faz de conta na educação

Paula Caroline Alves de Oliveira

 

DOI: 10.5281/zenodo.12636334 

 

 

RESUMO

Este artigo objetiva compreender o jogo de faz-de-conta como atividade principal das crianças na educação infantil, pois esta atividade demonstra uma forma peculiar da relação da criança com a realidade, e como essa atividade promove o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Sendo assim, entendemos o jogo de faz de conta traz para o desenvolvimento das crianças em idade pré-escolar, a partir dos pressupostos trazidos pela teoria Histórico-Cultural, em principal pelos estudos de Vigotsky (1996, 1931) e estudiosos da mesma vertente teórica. O estudo considera o desenvolvimento da criança na educação infantil, bem como o que a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018) estabelecem para a educação nesta etapa da escolarização básica e o jogo de faz de conta como atividade principal a partir da teoria histórico-cultural. Para tanto, realizou-se um estudo de cunho teórico, ou seja, foram utilizados bibliografia já existente para o desenvolvimento desse artigo. A partir da pesquisa, evidenciou-se que o desenvolvimento é um processo de apropriação da cultura humana, o qual se distancia de explicações naturalizantes, pois o desenvolvimento não se trata de um processo linear, de etapas subsequentes. Ao invés disso, o processo de desenvolvimento é entendido como dialético, repleto de idas e vindas, já que é revolucionário (VIGOTSKY, 1931). Diante dessa compreensão de desenvolvimento, a educação infantil e o jogo de faz de conta nesta etapa da escolarização, precisam de intencionalidade pedagógica, sem abrir mão do ensino nos momentos de brincadeira.

 

Palavras-chave: Desenvolvimento. Educação Infantil. Jogo de faz de conta.

 

 

Introdução

 

O estudo se desenvolveu a partir do seguinte problema: Como o jogo de faz-de-conta incide no desenvolvimento das crianças na educação infantil?

A partir da problemática apresentada, este TCC objetiva compreender o jogo de faz-de-conta como atividade principal das crianças na educação infantil, pois demonstra uma forma peculiar da relação da criança com a realidade, e como essa atividade promove o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Além do objetivo geral, os objetivos específicos serão: realizar um levantamento teórico sobre o jogo de faz-de-conta a partir da teoria histórico-cultural; compreender o que a Base Nacional Comum Curricular apresenta para o desenvolvimento das crianças e entender as possibilidades dessa atividade no contexto escolar.

Para tanto, realizou-se um estudo teórico, ou seja, um estudo bibliográfico, já que foram utilizadas pesquisas já existentes sobre a temática. As pesquisas já existentes se constituem como importante referencial para os novos estudos, de modo que subsidiam as argumentações construídas.

Além disso, apresentaremos análises sobre o desenvolvimento cultural a partir da teoria Histórico-cultural, já que essa compreensão altera todas as explicações para o desenvolvimento das crianças da educação infantil. Sobre o desenvolvimento cultural da criança, é importante considerar que as atividades como o jogo e a brincadeira não são atividades naturais, visto que elas precisam ser mediadas e realizadas intencionalmente.

Para embasamento teórico, serão utilizadas as obras de Vigotsky (1996, 1931) e demais pesquisadores que utilizam a mesma vertente teórica, e como tal, consideram a natureza social do jogo. Entre eles, apresentaremos as considerações de Martins (2013, 2006), Arce e Simões (2006) e Saviani (2013).

Também serão utilizados os documentos oficiais, como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação (BRASIL, 2018), Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (Brasil, 2013) e Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (1998). As análises desses documentos demonstram como o conceito de brincadeira na educação infantil se alterou no decorrer do tempo e o quanto ainda precisamos avançar nos estudos que possibilitam a compreensão dessa atividade como atividade principal.

 

 

Metodologia

 

O estudo foi realizado a partir de um estudo de cunho bibliográfico, já que se realizará um levantamento teórico das produções já existentes sobre a o jogo de faz de conta e o desenvolvimento da criança na educação infantil. O levantamento bibliográfico se constitui uma importante ferramenta para a compreensão da realidade objetiva, pois concentra a parte da produção humana. Neste levantamento bibliográfico foram selecionados os trabalhos já realizados sobre o tema, a fim de fornecer informações relevantes para análise (LAKATOS e MANCONI, 2003). Vale destacar que este levantamento levou em consideração as produções que compartilham da mesma vertente teórica da Teoria Histórico-Cultural.

Diante das pesquisas realizadas em livros físicos e em plataformas digitais (Google Acadêmico e Portal de Periódicos Capes) foram selecionados artigos a partir dos resumos. Os artigos selecionados, se tornaram alvos de estudo, a fim de avaliar se auxiliariam na elaboração teórica deste TCC. Sendo assim, as seleções prévias foram importantes para o desenvolvimento posterior deste estudo.

Outro aspecto considerado na pesquisa diz respeito à necessidade da criança da educação infantil ser compreendida a partir dos aspectos materiais, isso significa que as análises realizadas levarão em consideração as condições objetivas da própria escola, isso porque, de acordo com a teoria histórico-cultural, a compreensão da totalidade requer que as condições materiais não sejam retiradas do contexto das quais pertencem.

 

 

Revisão bibliográfica/ Estado da arte

 

O Desenvolvimento cultural

 

A fim de compreender o desenvolvimento cultural da conduta, trataremos de considerá-lo como um processo vivo, dialético e repleto de conflitos, e como tal, de contradições, já que as funções naturais se chocam e entram em conflito com as funções de origem cultural. Neste processo dialético ainda que as funções naturais sejam negadas e superadas no decorrer do desenvolvimento, elas não deixam de existir, pois uma das teses fundamentais da teoria “é o reconhecimento da base natural das formas culturais do comportamento” (VYGOTSKY, 1931 p. 151).

Na tentativa de aclarar o conceito de desenvolvimento cultural das funções psíquicas superiores, Vigotsky (1931) aponta para a necessidade de superação dos conceitos que definem o desenvolvimento pela acumulação de aprendizagens isoladas, que se produz pela maturação das potencias internas, já que o desenvolvimento das funções psíquicas superiores não são resultados da maturação dos processos internos, elas são funções de origem social, advindas das relações mediadas entre os homens, e esse processo complexo se dá a partir da interiorização das relações que primeiro foram de origem social, para depois se tornarem funções da própria pessoa. Nesse sentido, as funções superiores aparecem primeiramente no plano social (interpsíquico) e depois no plano psicológico (intrapsíquico), destaca-se que este processo está em constante movimento, de modo que as funções psíquicas da própria pessoa se transformam por meio da apropriação dos significados sociais advindos das relações entre pessoas (do externo ao interno) (VYGOTSKY, 1931).

Ao considerarmos a natureza social de todo o desenvolvimento psicológico, estamos, sobretudo, considerando que “o dito se refere igualmente à atenção voluntária, à memória lógica, à formação de conceitos e ao desenvolvimento da vontade” (VYGOTSKY, 1931, p. 149). Em consonância com a origem social do desenvolvimento, o jogo também é uma atividade de origem social, e por meio dele as funções superiores como a linguagem, a atenção, e memória e o domínio da conduta se desenvolvem, já que tais funções regem as situações de jogo. Por essa razão, apontaremos que essa atividade não é de origem natural e, dessa forma, precisa ser mediada pelo outro.

Ao definir o jogo, Vigotsky (1996) propõe uma compreensão nova e destaca que ela é totalmente diferente das concepções que utilizam esse conceito para definir qualquer atividade infantil.

A partir da teoria histórico-cultural, a criança precisa ser compreendida a partir dos aspectos culturais. Essa criança que carrega consigo a humanidade produzida pelas gerações anteriores, não a carrega de forma natural, pois a criança não nasce com os conhecimentos necessários para lhe tornar humana, mas ela se torna humana a partir da aprendizagem e apropriação dos conhecimentos historicamente produzidos (SAVIANI, 2013).

Este processo, que carrega a apropriação dos conceitos, se dá a partir da interação com o outro, e na educação infantil mais especificamente, acontece a partir do jogo mediado. Isso significa que a relação que primeiro foi interpessoal, se torna intrapessoal, ou seja, da própria pessoa e são essas relações internalizadas que provocam mudanças no psiquismo (MARTINS, 2013).

Superando a pouca definição destinada ao conceito de jogo, ele propõe que no jogo ocorrem constantes relações da criança com o mundo, ao passo que as relações criadas no interior das situações fictícias possibilitam mudanças importantes nas funções psíquicas superiores. Vale ressaltar que para este estudo utilizaremos os conceitos elaborados por Vigotsky sobre o jogo de papéis, haja vista o fato dessa atividade ser entendida como atividade principal das crianças em idade pré-escolar. Sobre o jogo de papéis, Vigotsky postula que:

 

Me parece também bastante frutífera e essencial a definição positiva do jogo, que se destaca nesta ideia no primeiro plano, é dizer, que o jogo é uma relação peculiar com a realidade, que se caracteriza por situações fictícias, transferir as propriedades de um objeto ao outro. (VYGOTSKI, 1996, p.349)

 

Ao enfocar o caráter positivo do jogo (tomo IV) realizamos uma aproximação ao caráter positivo da conduta da criança (tomo III). Para tanto, Vigotsky (1931) descreve que as correntes psicológicas anteriores aos seus estudos, denominadas por ele como a “velha psicologia” traziam caracterizações negativas para a conduta infantil, ao apontar aquilo que a criança não possui em comparação ao adulto. Essa tendência causa prejuízos ao desenvolvimento, pois impede que a criança seja entendida em sua especificidade hoje. Contrariando a negatividade com que a criança é considerada, Vigotsky apresenta uma nova perspectiva ao desenvolvimento, ao mencionar que “a tarefa que se levanta hoje em dia à psicologia é a de captar a peculiaridade real da conduta da criança em toda sua plenitude e riqueza de expressão e apresentar o positivo de sua personalidade” (VYGOTSKY, 1931, p.140).

Em sua elaboração teórica, Vigotsky (1931) considera que a modificação proposta por ele apenas se efetiva mediante a superação das concepções que tratam de forma natural a raiz do desenvolvimento infantil. De forma oposta a essas definições teóricas, a teoria histórico-cultural postula que a raiz do desenvolvimento precisa ser entendida como um complexo processo dialético, caracterizado pela “transformação qualitativa de umas formas em ouras, em entrelaçamento complexo de processos evolutivos e involutivos, a complexa intersecção de fatores externos e internos, um complexo processo de superação de dificuldades e adaptação” (VYGOTSKY, 1931, p. 140).

Dessa forma, trazer o caráter positivo do jogo requer que modifiquemos a sua raiz, ou seja, a compreensão que essa atividade não é natural da criança, ela precisa ser mediada e sua origem é social. Além disso, as situações fictícias, os papéis que a criança assume revela sua peculiar forma de se relacionar com o mundo e com os outros. Facci (2006, p. 15) descreve que “as brincadeiras das crianças não são instintivas e o que determina seu conteúdo é a percepção que a criança tem do mundo dos objetos humanos.”

Vale destacar que os papéis sociais assumidos pelas crianças nas situações de jogo, bem como as situações fictícias carregam consigo o pressuposto de relação social que permeia toda a teoria histórico-cultural, a qual assume o papel ativo do sujeito, ao passo que todas as relações estabelecidas ocorrem em movimento dialético, de modo que:

 

Sobre a conduta humana, cabe dizer, em geral, que sai peculiaridade em primeiro lugar deve-se a que o homem intervém ativamente em suas relações com o meio e que, através do meio e que, através do meio ele mesmo modifica seu próprio comportamento, superando-o a seu poder (VYGOTSKY, 1931, p. 89).

 

Dito isso, entenderemos como o jogo de papéis é uma atividade importante para o desenvolvimento das funções psíquicas superiores, como a linguagem e o domínio da conduta. Ainda que focalizemos apenas essas funções no atual estudo, salientamos que todas as funções psíquicas superiores se desenvolvem em interação, ou seja, em uma relação interfuncional.

Tal explicação possibilita compreendermos que o jogo vai adquirindo relações cada vez mais complexas, de modo que a própria linguagem e a significação dela, por meio de “estímulos artificiais que confere significado a conduta” (Vygotsky, 1931, p. 84), se complexificam e simbolizam um importante salto para o psiquismo e revoluções no desenvolvimento infantil. Além disso, à medida que os jogos de papéis se concretizam, “é necessário que seus integrantes descentrem-se de seus próprios atos e ampliem a atenção sobre a ação dos outros” (MARTINS, 2006, p. 41). Por isso, nos jogos de papéis as crianças adequam suas condutas ao papel assumido e controlam todos os impulsos imediatos para que o jogo ocorra.

No processo de desenvolvimento da linguagem, a princípio sua função é apenas de comunicação com os outros, contudo, após a complexificação dela e os constantes processos de internalização, a linguagem se converte em linguagem interior, a qual se traduz como ferramenta fundamental do pensamento da criança. (VYGOTSKY, 1931) Essa característica da linguagem permeará as situações de jogo de papéis, uma vez que elas serão imprescindíveis para a efetivação dos diálogos e relações estabelecidas com os outros.

Nas situações de jogo a criança se relaciona com o outro e se apropria dos significados sociais, uma vez que as situações fictícias criadas simbolizam as relações da vida concreta e material das crianças. Isso porque, primeiro as crianças dividem os papéis que assumirão, e isso precisa ser realizado em acordo, desenvolvem o argumento o jogo, obedecendo ao enredo estabelecido previamente e atua com os outros mediante as regras estabelecidas por eles. (ARCE; SIMÕES, 2006)

Como já dito, o processo de internalização das relações ocorre em dois planos (Inter e intrapsíquico) e como trata-se de uma atividade de origem social, a internalização dos significados das palavras e do controle de seus impulsos imediatos (para se adequar a situação de jogo) também ocorrem da mesma forma. Por essa razão, a atividade mediadora não pode ser excluída, visto que os homens se utilizam dos signos1 para mediar as relações e influir na conduta de modo que novas conexões psíquicas são estabelecidas (VYGOTSKY, 1931), dito de outro modo, a mediação é imprescindível, já que a internalização não ocorrerá por forças naturais, ela precisa ser intencional e consciente.

O significado do jogo como atividade cultural que envolve a atuação ativa do sujeito com os outros (pessoas e objetos) é uma compreensão que se apresenta com pouca especificidade teoria sobre a concepção de desenvolvimento por trás das definições adotadas nos documentos que regem a educação (1998, 2013) o culmina na naturalização do jogo no cotidiano da escola. Essa preocupação se estende ao passo que é na educação infantil que o jogo de papéis “atinge seu ápice” (ARCE; SIMÃO, 2006, p. 75).

Isso porque, as relações provenientes dos jogos de papéis possibilitam que criança reconstrua as relações vivenciadas no contexto em que está inserida, de modo que constantes significações ocorrem a partir da mediação do outro e do diálogo estabelecido. Além disso, ao vivenciar as relações existentes na sociedade, os acordos e combinados se formam como condições necessárias para o enredo se estabelecer (Idem).

Faz-se imprescindível não negligenciar a criança da educação infantil. Isso porque, a criança possui características específicas, já que a atividade principal, como aquela que exerce alterações significativas no psiquismo é o jogo de papéis. Ressalta-se ainda que esta atividade é considerada principal, não porque ela ocupa a maior parte do tempo da criança, mas pelo fato dessa atividade expressar a forma com a qual a criança se relaciona com o mundo e significa as relações (ELKONIN, 1998).

Ainda que haja possibilidades de manutenção das interações sociais, os jogos de papéis mediados (atividade principal das crianças matriculadas na educação infantil) se demonstram como desafios, haja vista que as condições de vida concreta impossibilitam a criação de situações fictícias. Sobre isso, entende-se que “no homem, é o jogo a reconstrução de uma atividade que destaque o seu conteúdo social, humano: as suas tarefas e as normas das relações sociais” (ELKONIN, 1998, p. 20).

Dada a importância do jogo de faz de conta a partir da teoria Histórico-Cultural para o desenvolvimento das crianças, analisaremos, em seguida, o que a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018) apresenta-nos sobre essa atividade.

 

 

3.2 A Base Nacional Comum Curricular e o jogo de faz de conta

 

Ao trazer os pressupostos existentes na BNCC (BRASIL 2018) sobre o jogo de faz de conta, é importante considerar que as definições existentes neste documento superaram as definições de documentos anteriores, como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil - DCNEI (BRASIL, 2013) e os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 1998). Destaca-se ainda que ambos os documentos não diferenciam as diversas possibilidades de brincadeira no contexto escolar.

Dito isso, o RCNEI (Brasil, 1998, p. 59) apresenta que:

 

É preciso que o professor tenha consciência que na brincadeira as crianças recriam e estabilizam aquilo que sabem sobre as mais diversas esferas do conhecimento, em uma atividade espontânea e imaginativa. Nessa perspectiva não se deve confundir situações nas quais se objetiva determinadas aprendizagens relativas a conceitos, procedimentos ou atitudes explícitas com aquelas nas quais os conhecimentos são experimentados de uma maneira espontânea e destituída de objetivos imediatos pelas crianças. Pode-se, entretanto, utilizar os jogos, especialmente aqueles que possuem regras, como atividades didáticas. É preciso, porém, que o professor tenha consciência que as crianças não estarão brincando livremente nestas situações, pois há objetivos didáticos em questão (BRASIl, 1998, p. 59).

 

Ainda que evidenciemos considerável atenção à brincadeira neste documento, o conceito de brincadeira trazido na citação se refere a uma atividade espontânea, ou seja, que está intrínseco ao “ser criança”, como uma espécie de atividade natural da infância. Cabe ressaltar que essa concepção traz consigo o conceito de desenvolvimento calcado apenas nos aspectos naturais ou biológicos, como se todo o desenvolvimento do sujeito se relacionasse às potencias internas e a maturação daquilo que já existe internamente. (VYGOTSKY, 1931)

Ao postular o brincar espontâneo, a imaginação (função psíquica mencionada na citação) também se apresenta como uma função natural, e como tal, anula o seu desenvolvimento cultural, ou seja, calcado nas relações interpessoais, as quais são mediadas e significadas pelo outro.

Além dessa descrição contida no RCNEI (idem), também encontramos nas DCN (idem) grande atenção à brincadeira como uma característica da infância e, por isso, como atividade que deve compor a prática pedagógica. Um exemplo disso se encontra na seguinte descrição:

 

Com base nesse paradigma, a proposta pedagógica das instituições de Educação Infantil deve ter como objetivo principal promover o desenvolvimento integral das crianças de zero a cinco anos de idade garantindo a cada uma delas o acesso a processos de construção de conhecimentos e a aprendizagem de diferentes linguagens, assim como o direito à proteção, à saúde, à liberdade, ao respeito, à dignidade, à brincadeira, à convivência e interação com outras crianças. Daí decorrem algumas condições para a organização curricular. (BRASIL, 2013, p. 90)

 

Ainda que haja atenção para a brincadeira neste nível de ensino, há que se considerar a pouca definição e diferenciação trazida, já que o termo “brincadeira” é utilizado em várias situações diferentes. Isso pode trazer indícios para a naturalização e espontaneísmo dessa atividade, já que as descrições dadas ao brincar não são acompanhadas de clareza teórica sobre a concepção de desenvolvimento adotada.

Corroborando com essa perspectiva, Martins (2009, p.75) entende que a pouca definição destinada ao termo brincar pode se caracterizar um complicador para a prática pedagógica, uma vez que suas análises das situações de jogo na escola apresentam que “não se delimita com clareza a concepção relativa ao brincar, que é componente de uma concepção de educação, e que este pode ser um dos elementos que dificultam o seu desenvolvimento.”

Vigotsky (1996) também identifica a pouca clareza dada ao jogo como um problema para o entendimento da atividade infantil, visto que os seus estudos apresentam que

 

Essa é uma das questões mais difíceis e, na minha opinião, uma das menos elaboradas teoricamente. Segundo a antiga definição, o jogo é igual a qualquer outra atividade infantil que não busca resultados; Eles acreditam que todos os tipos de atividades infantis são equivalentes entre si. Bem a criança abre ou fecha a porta, bem brinca de cavalinho, para o adulto um e outro o faz por seu prazer, para brincar, não se guia por nenhum propósito sério nem busca nenhum benefício. Qualifique-se, tudo isso jogo (VYGOTSKI, 1996, p. 348).

 

O ano de 2018 simbolizou um marco para educação nacional, já que vislumbrou-se a publicação da Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018). Tal documento pressupõe conter um conjunto de aprendizagens essenciais para a formação e desenvolvimento do educando. Ainda nesse sentido, em sua própria apresentação, evidencia-se a seguinte afirmação: “Elaborada por especialistas de todas as áreas do conhecimento, a Base é um documento completo e contemporâneo, que corresponde às demandas do estudante desta época, preparando-o para o futuro” (idem, p. 5).

Sobre as orientações advindas da BNCC (BRASIL, 2018) para a educação infantil, há de se considerar que, apesar de sua apresentação conter uma afirmação que o denomina como um documento completo, as orientações para esta etapa de ensino ocupam vinte páginas. Dada a complexidade da educação e dos processos de desenvolvimento, já que eles não ocorrem de forma linear, nem tampouco são universais e aplicáveis a todos os contextos, uma vez que os processos de aprendizagens dependem das condições concretas de cada contexto, haja vista que o desenvolvimento das funções psicológicas superiores se trata de um complexo processo dialético (VYGOTSKY, 1931, p. 140), a quantidade de páginas organizadas para orientar uma etapa de ensino, contraria a própria afirmação trazida na BNCC (BRASIL, 2018) sobre sua abrangência, seguida da proposta de “garantir o conjunto de aprendizagens essenciais” (Idem, p. 5).

Diante das orientações destinadas à educação infantil, os questionamentos suscitados a partir da análise da BNCC (Idem), também abrangem a ampla utilização do termo brincadeira, ao passo que esse conceito é seguidamente repetido. Dada essa especificidade, outro questionamento deve-se ao fato do jogo e brincadeira e serem apresentados como sinônimos, ainda que não se destine explicações sobre a peculiaridade de cada atividade para o desenvolvimento infantil.

No que diz respeito às proposições apresentadas sobre brincadeiras, a BNCC (Idem) apresenta variadas menções, já que esta atividade demonstra-se eixo estruturante, visto que

 

Na Educação Infantil, as aprendizagens essenciais compreendem tanto comportamentos, habilidades e conhecimentos quanto vivências que promovem aprendizagem e desenvolvimento nos diversos campos de experiências, sempre tomando as interações e a brincadeira como eixos estruturantes (BRASIL, 2018, p. 44).

 

A partir da concepção apresentada sobre a brincadeira entende-se, a partir da BNCC (Idem) a importância dessa atividade para a educação infantil, já que as menções para esta atividade perpassam por todos os campos de experiência2 (O eu, o outro e o nós; Corpo, gestos e movimentos; Traços, sons, cores e formas; Escuta, fala, pensamento e imaginação; Espaços, tempos, quantidades, relações e transformações), visto que nos objetivos elencados para cada campo, destacam as brincadeiras em seus trechos.

Há de se considerar que o jogo e a brincadeira também não são diferenciados. Ressaltamos a diferenciação e a necessidade dela no contexto escolar, pois um jogo engloba inúmeras possibilidades, assim como a brincadeira, podendo ser jogo de cartas, jogo da memória, ou talvez brincadeira de pega-pega, esconde-esconde, bola, etc. contudo, evidencia-se que o documento não mais apresenta essas atividades como naturais, mas sim como um modo de interação da criança com a sociedade, de modo que:

 

A interação durante o brincar caracteriza o cotidiano da infância, trazendo consigo muitas aprendizagens e potenciais para o desenvolvimento integral das crianças. Ao observar as interações e a brincadeira entre as crianças e delas com os adultos, é possível identificar, por exemplo, a expressão dos afetos, a mediação das frustrações, a resolução de conflitos e a regulação das emoções (BRASIL, 2018, p. 37).

 

Ao ressaltar-se a nomenclatura destinada aos diferentes tipos de jogo e brincadeiras e sua significação para a educação, o documento traz em suas orientações o jogo de faz de conta. Ainda que a brincadeira de faz de conta, nomenclatura utilizada no próprio documento, seja mencionada, ela é trazida com outros tipos de brincadeiras, e, em duas das quatro menções, relacionadas à encenações. Desse modo, todas as possibilidades advindas do jogo de faz de conta tal qual apresentada pela teoria Histórico-Cultural, como atividade principal e modo de relação peculiar da criança com a realidade, não são apresentadas na BNCC (Idem).

Sobre a importância do jogo de faz de conta, Vigotsky (1996, 1931) demonstra que no jogo de faz de conta as crianças assumem papéis existentes na vida concreta, os quais exigem controle dos impulsos imediatos e naturais para adequação da conduta ao enredo do jogo.

Por meio dessa atividade as crianças conversam com os seus colegas, de modo que a linguagem, função psicológica superior, se destaca. Destinamos atenção a essa função, pois ela é responsável por mudanças significativas no psiquismo, já que permite que os significados dos signos utilizados nessas situações (jogo de papéis sociais), permeie toda a atividade de representação (VYGOTSKY, 1931).

Um fator a se considerar sobre o jogo de faz de conta na escola é que ainda que o jogo exista na sala de aula, por conta da falta de mediação o seu enredo não se complexifique e os diálogos tendem a acabar rapidamente. Esse aspecto (mediação) consolida a natureza social do jogo de papéis, uma vez que os enredos e papéis assumidos não existem como características inatas no psiquismo do aluno, eles são relações sociais internalizadas.

Sobre isso, Martins (2006, p. 49) entende que

 

Preterir a participação ativa do professor, portador do patrimônio humano genérico, representa abandonar a criança à sua própria sorte, pois é ele quem exerce a principal influência sobre ela, auxiliando-a nas apropriações requeridas à complexificação de seu desenvolvimento.

 

Por essa razão, a não participação da professora nas atividades de jogo propostas por ela, também elucidam sua concepção do desenvolvimento natural, ou seja, inato ao aluno, a qual anula da mediação e do papel da cultura para o desenvolvimento psíquico.

O que se afirma pela teoria utilizada para este artigo é que o jogo de faz de conta não é uma atividade intrínseca a criança, visto que essa concepção naturaliza o desenvolvimento humano. Ainda que o jogo se apresente como atividade principal para as crianças da educação infantil, é importante que ele seja planejado e proposto pelo(a) professor(a), de modo que se torne uma atividade mediada.

 

 

Considerações finais

 

As análises teóricas e práticas nos demonstraram que, de fato, a escola carrega consigo a concepção do brincar natural, o que aponta para a naturalização das demais funções psicológicas das crianças, ou seja, entendimento que essas funções são inatas.

Diante das considerações tecidas no decorrer do estudo, resta-nos o seguinte questionamento: Como a escola pode superar as atividades e concepções de desenvolvimento que se cristalizaram? Consideramos que essa superação é possível a partir do reconhecimento do desenvolvimento cultural, bem como da intencionalidade dos estímulos mediadores.

Sendo assim, a partir dos pressupostos histórico-culturais entende-se a impossibilidade de dissociar a concepção de jogo da concepção de desenvolvimento, ao passo que para compreendermos o desenvolvimento cultural das crianças e como se dão as propostas de jogo na sala de aula. Além disso, entendemos, a partir dos levantamentos teóricos realizados, o jogo de papéis como uma atividade cultural e imprescindível para o desenvolvimento das funções psíquicas superior, e ao fato da concepção de desenvolvimento trazida pelos educadores sobre o desenvolvimento infantil influi na prática pedagógica, isto é, como são propostas as situações de jogo de faz de conta nas escolas.

Dessa forma, subsidiado nessa na concepção histórico-cultural do desenvolvimento, não ocorrerá a anulação do papel do professor frente à brincadeira, já que será imprescindível que ele organize as situações de jogo, possibilite que os alunos tenham contato com instrumentos diversificados e colabore para o enriquecimento dos diálogos, atuando de modo que os significados das relações sejam internalizados, de modo que a linguagem se complexifique e transforme o psiquismo da criança.

 

 

Referências

 

ARCE, A.; SIMÕES, R. A psicogênese da brincadeira de papéis sociais e/ou jogo protagonizado na psicologia do jogo de D.B. Elkonin. In: Brincadeira de papéis sociais na educação infantil: as contribuições de Vigotski, Leontiev e Elkonin. Arce, A. e Duarte, N. (organizadores). São Paulo: Xamã, 2006, p. 65-88.

 

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.

 

______. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. Brasília: MEC, 2013.

 

______. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria da Educação Fundamental. Referencial curricular nacional para a educação infantil. 3 v. Brasília: MEC, 1998. Volume 1: Introdução.

 

ELKONIN, Daniil B. Psicologia do jogo. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

 

LAKATOS, E. M. MARCONI, M. A. Fundamentos de metodologia científica. 5. ed. - São Paulo: Atlas 2003.

 

MARTINS, Ligia Marcia. O Desenvolvimento do Psiquismo e a Educação Escolar: contribuições à luz da psicologiahistórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica, Campinas, Autores Associados, 2013.

 

MARTINS, L. M. A brincadeira de papéis sociais e a formação da personalidade. In: Brincadeira de papéis sociais na educação infantil: as contribuições de Vigotski, Leontiev e Elkonin. Arce, A. e Duarte, N. (organizadores). São Paulo: Xamã, 2006, p. 27-50.

 

SAVIANI, D. Infância e pedagogia histórico-crítica. In: MARSIGLIA, A. C. G. (Org.). Infância e pedagogia histórico-crítica. Campinas: Autores Associados, 2013.

 

VYGOTSKY, L. S. Obras escogidas: Historia del desarrollo de las funciones psíquicas superiores. Tomo III. Madrid: Visor, 1931.

 

______. Obras escogidas: Psicologia Infantil. Tomo IV. Madrid: Visor, 1996.

1 Nesse estudo o conceito de signo refere-se a todo estímulo artificialmente criado. (VYGOTSKY, 1931, p. 84).
2 É importante destacar a organização deste documento, visto que ele organiza as aprendizagem e objetivos para a educação infantil a partir dos campos de experiências.