História e caracterização do Transtorno do Espectro Autista (TEA)
Belmira Batista Chaves
Juraci Neris
Maria Fabiana da Silva Lino Winter
DOI: 10.5281/zenodo.10821734
RESUMO
Neste artigo vamos conhecer a história do Transtorno do Espectro Autista, as características que são a base para o diagnóstico e identificar alguns mitos e percepções que podem se constituir como barreiras atitudinais. Vamos compreender o que é considerado, na atualidade, como Transtorno do Espectro Autista (TEA), suas principais características, refletir sobre quem é este indivíduo com TEA e como as suas características podem se configurar subjetivamente. Foram realizados estudos bibliográficos de diferentes cientistas como, Ajuriaguerra (1980), Belisário Filho (2010), Bosa (2002), Joseph (2016), Kanner (2021), Orrú (2016) e outros estudiosos que acreditam que as características centrais assumem diversas formas em cada indivíduo.
PALAVRAS-CHAVE: Autismo. Características. Pessoas.
INTRODUÇÃO
O presente estudo tem como tema história e caracterização do Transtorno do Espectro Autista (TEA) um dos temas mais comentados na última década. Se lançarmos uma simples busca na Internet, vamos encontrar uma base de milhares e milhares de resultados. Veremos diversas informações, hipóteses, equívocos e informações divergentes sobre causas, tratamentos, atendimentos e até sobre o que é o TEA.
É preciso compreender que, antes de mais nada, conviver com pessoas que apresentam o TEA é assumir que existe outra forma de ver e perceber o mundo. É entender e aceitar que as relações humanas nunca vêm equipadas com um mapa e que a beleza reside justamente em percorrer o caminho e se encantar com as descobertas. É entender que não sabemos tudo e, por isso mesmo, precisamos abrir espaço para a escuta, para o silêncio, para a troca, para a angústia, para tudo o que pode nos mobilizar e também para o que pode nos amedrontar. Só assim estaremos prontos para aprender e ensinar e para olhar para esse outro, tão diferente de nós, de uma forma repleta de possibilidades, pensando em sua subjetividade e não somente em características ritualísticas ou comportamentos que não se enquadram em um padrão socialmente considerado adequado (SILVA; ROZEK, 2020, p.13)
Nas escolas e no AEE percebe-se que mesmo com todas as informações disponíveis, os professores ainda apresentam muitas dúvidas.
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) ou popularmente chamado Autismo, se refere a um espectro de diferentes características que acompanham os indivíduos em seu desenvolvimento.
Fala-se de altas habilidades, de dificuldades sensoriais, de movimentos repetitivos, de um desenvolvimento aquém do esperado ou de um excelente desenvolvimento cognitivo, mas com inabilidade social. Essas diferentes possibilidades de como esse indivíduo pode se apresentar, impacta os profissionais, exigindo dos mesmos um olhar observador e reflexivo, para acolher a diferença entre SER e ESTAR nesse mundo, realizando um planejamento adequado que acolha as individualidades.
Cabe ressaltar que parte da legislação brasileira ainda não foi atualizada para a nova terminologia “Transtorno do Espectro Autista”, como por exemplo, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB 9654/96). Aparece nela, ainda, a terminologia oficial antes de 2013, “Transtorno Global do Desenvolvimento”. O processo de adequação da terminologia está em andamento.
DESENVOLVIMENTO
A sociedade contribui com a imagem que fazemos sobre o TEA, quando cria um mito a respeito do assunto. Esses mitos reforçam que aquilo que conhecemos sobre o outro, ou sobre um assunto, está atrelado às configurações subjetivas sociais, impulsionadas pelas mídias, que perpassam, durante gerações, ideias pré-concebidas a respeito de como funcionam, pensam e agem as pessoas com TEA (SILVA, 2021). O que pensamos sobre o outro, diferente de nós, estão calcadas em uma concepção hegemônica sobre o homem e seu desenvolvimento de acordo com cada cultura.
Sendo assim, as informações que recebemos de uma determinada sociedade, que vamos relacionando com nossas experiências e pensamentos, são chamadas de “configurações subjetivas”, as quais, construídas por determinado grupo, em diferentes épocas, circulam como verdades absolutas, fazendo parte de uma subjetividade social que acaba por sugestionar as diferentes maneiras pelas quais pensamos e agimos com as pessoas (como as que construímos concepções sobre o TEA).
Essas diversas configurações subjetivas estão presentes em afirmativas como as que seguem:
“Autismo é uma doença”;
“Todo autista se balança”;
“Autistas vivem em um mundo próprio”;
“Autistas não conseguem se socializar, preferem ficar sozinhos e isolados”; entre outras.
Frases essas, muitas vezes, amparadas em preconceito e medo a respeito desse outro que se apresenta ao mundo com uma forma própria de se relacionar, pensar e agir. Separamos um vídeo que esclarece mais algumas configurações subjetivas ou, no popular, alguns mitos sobre o TEA.
Essas ideias que circulam nos espaços sociais acabam por influenciar os espaços educativos, sustentando as barreiras atitudinais e dificultando o acolhimento da maneira de ser e aprender do indivíduo com TEA. Nesse sentido, as propostas pedagógicas acabam se baseando em modelos dominantes de metodologias, que têm como atributo principal a adaptação do indivíduo a uma ordem, a um modelo pré-estabelecido que pressupõe a necessidade de enquadramento, de um padrão de comportamento para ter a aceitação social (SILVA, 2021).
2.1 A História do Transtorno do Espectro Autista
Existe, na atualidade, um número enorme de informações a respeito do TEA, suas causas e características. Esse acúmulo de estudos reflete não só o interesse no TEA, que tem crescido, mas também a ignorância humana e, muitas vezes, profissional, de vários aspectos que ainda não são compreensíveis.
Primeiramente, o termo autismo surge na área da psiquiatria, com o objetivo de nomear os comportamentos das pessoas que apresentavam características semelhantes.
A palavra foi utilizada pela primeira vez pelo psiquiatra suíço, Eugen Bleuler, exímio conhecedor da “demência precoce”, denominada por ele como “esquizofrenia”. Bleuler usou, em 1911, palavras como “ensimesmamento” e “autismo” para explicitar “a perda do contato com a realidade, o que acarreta, como consequência, uma impossibilidade ou uma grande dificuldade para se comunicar com os demais” (AJURIAGUERRA, 1980, p. 669).
Bleuler apresentou o termo em um artigo denominado “Dementia Praecox”, onde descrevia a complexidade da esquizofrenia, e denominava o retraimento do paciente para um mundo interior como autismo (AJURIAGUERRA, 1980; CUNHA, 2012; ORRÚ, 2016). Ele destacava que esse “ensimesmamento”, que não se tratava de esquizofrenia, não é o resultado de algo patológico, mas uma diferença no modo de se comunicar socialmente.
Essa ideia se perpetuou por décadas e, na atualidade, ainda é recorrente ouvirmos a frase: “os autistas vivem em um mundo próprio”.
Em 1926, Grunya Sukhareva, uma psiquiatra russa, nascida na Ucrânia, publicou em uma revista alemã, um relato detalhado de observações realizadas por ela, na escola terapêutica do departamento de Psiconeurologia Infantil, em Moscou. O relato trazia a descrição dos atendimentos e observações do caso de seis meninos, realizados no período de dois anos, na qual descrevia o que denominou, conforme os estudos de Bleuler, uma “psicopatia esquizóide”.
Em publicações posteriores ela substituiu o termo “psicopatia esquizóide” por “psicopatia autística”, para definir a característica de auto centramento presente na esquizofrenia. Em 1927, Grunya publicou outro estudo de caso, só que desta vez, com meninas, onde apontava as mesmas características vistas nos meninos, mas com manifestações diferentes.
Você percebeu que já em 1927 a diferença na manifestação das características entre meninos e meninas era pontuada?
Hoje, essa diferença tem recebido muita atenção. Dawson Bernier e Nigg (2021) descrevem que as meninas necessitam ter mais disrupção genética do que os meninos para terem a manifestação do TEA. Ou seja, as meninas necessitam ter maior quantidade de interrupções no desenvolvimento genético ou mais erros genéticos. Por ser descrita em uma proporção de 4 meninos para 1 menina com TEA, parece aos autores que o diagnóstico em meninas não é feito com o mesmo cuidado do que nos meninos. Outra hipótese é que as meninas conseguem “camuflar” melhor as características do transtorno por apresentarem maior capacidade nas habilidades sociais.
Melanie Klein, psicanalista austríaca, publicou em 1930 um artigo em que retratou na terapia psicanalítica o encontro com uma criança, Dick, de quatro anos, que não estabelecia o contato afetivo com os outros, não brincava e não representava, simbolicamente, a realidade. Nesse relato, ela utilizou termos como “ensimesmado” e apontava características relacionadas à falta de comunicação, dificuldades na interação social e nos comportamentos, a ausência da fala, falta de reciprocidade afetiva e desinteresse por brinquedos ou usos atípicos de objetos.
Tal como Bleuler, Melaine Klein reflete com o caso de Dick, sobre uma maneira diferenciada de elaborar os afetos e as demandas da realidade, marcando que Dick apresentava uma ausência de pensamento fantasioso, o que o fazia diferente de outros casos relatados de crianças diagnosticadas como ele (1981). Segundo a autora, a ausência de pensamentos fantasiosos nas brincadeiras de Dick refletia uma característica impressionante e distinta de outros casos já relatados de crianças ensimesmadas.
Melaine Klein marcava em suas observações uma característica que, hoje, denominamos como “ausência de brinquedo simbólico”. Sabemos que o brincar representa um aspecto central no desenvolvimento humano, propiciando trocas entre as crianças e a simbolização de suas vivências. Se há uma dificuldade da criança com TEA em realizar a brincadeira de “faz de conta”, ou seja, dificuldade em simbolizar, haverá uma dificuldade em outros processos da aprendizagem que também passam pelo ato simbólico, como a leitura e a escrita. Cabe ao professor do AEE qualificar esse brincar e auxiliar o professor da sala comum na compreensão desse processo.
Você sabe quem é considerado o “pai do autismo”? Aquele que definiu de forma acadêmica características desse indivíduo?
Foram exatamente 32 anos depois de Eugene Bleuler, na década de 40, que um psiquiatra austríaco, residente nos Estados Unidos, chamado Léo Kanner, resgatou o termo dos estudos de Bleuler e utilizou nas descrições de casos que ele denominou como Autismo Infantil. Kanner se dedicava à pesquisa e compreensão de comportamentos considerados estranhos e muito particulares de algumas crianças.
Kanner apresentou seus estudos em um artigo publicado em 1943, intitulado “Autistic disturbances of affective contact”, publicado pela revista Nervous Children. Ele escreveu sobre 11 casos que atendia (8 meninos e 3 meninas), de crianças com idade entre 5 e 11 anos, que apresentavam características semelhantes, não nomeadas anteriormente pela medicina.
As crianças estudadas por Kanner apresentavam algumas características comuns, mesmo que com uma variabilidade na intensidade, o que lhe permitia pensar em uma síndrome única, que, segundo ele, não se enquadrava em nada que já tivesse sido estudado na literatura médica.
Kanner descreveu que as crianças apresentavam um desejo forte de isolamento que se expressava pela inabilidade de estabelecer relações com os outros desde o início da vida, atrasos na aquisição e no uso da linguagem oral, a presença de diferentes rituais e necessidade de preservação de uma rotina. Detalhou que as crianças pareciam desprezar, ignorar, deixar de fora qualquer coisa que ameaçasse sua maneira de ser, fosse o contato físico direto, movimentos ou ruídos do ambiente, muitas vezes, demonstrando angústia e comportamentos desorganizados (KANNER, 1943).
Os pais, quando chegavam ao consultório, relatavam o comportamento dos filhos com frases do tipo: “Ele é autossuficiente"; "Parece viver como se estivesse em uma concha"; "Mais feliz quando deixado sozinho"; "Age como se as pessoas não estivessem lá"; "Totalmente desligado de tudo sobre ele"; "Dá a impressão de silenciosa sabedoria"; "Parece que não desenvolveu a quantidade necessária de consciência social"; "Em suas ações parece que está hipnotizado por algo que não compreendemos".
Hoje, ainda podemos perceber no TEA muitas das características que Kanner apontou em seu artigo e que desenvolveu durante seus anos de atuação. Durante as décadas, foram se aperfeiçoando a maneira de perceber essas características, mas as questões sociais, de interação e de comunicação persistem até hoje.
Kanner revisou suas pesquisas, repensou conceitos sobre o que chamava de “autismo infantil”, mas o que sempre permanecia em seus artigos e palestras era o destaque às dificuldades de relacionamentos sociais por parte das crianças, o apego às rotinas, alterações na linguagem e a obsessão por objetos, muitas vezes, utilizados sem nenhuma vinculação com a função original.
Destacamos outra característica que ainda se percebe nas pessoas que recebem o diagnóstico de TEA: o apego às rotinas. Com certeza é uma marca importante do transtorno, muitas vezes vista como impeditiva na realização de várias atividades ou na vivência das experiências comuns do dia a dia. Contudo, o suposto apego à rotina tem muito a ver com a impossibilidade de flexibilização do pensamento. Falaremos mais adiante desta característica que acaba dificultando as atividades escolares.
Seguindo a história, durante suas observações e entrevistas com os pais das crianças que atendia, Kanner verificou que muitas das crianças que ele colocou sob o mesmo diagnóstico de autismo infantil, faziam parte de famílias com inteligência superior à média, segundo suas análises. Ele anunciou, no mesmo artigo, que acreditava que a causa do diagnóstico dado tinha a ver com questões parentais, falta de aceitação da gravidez ou a falta de um relacionamento afetivo com a mãe, o que causava o impedimento da comunicação (ORRU, 2016; SILVA, 2021).
Foram as primeiras afirmações de Kanner que lançaram ao mundo a ideia de que a causa do autismo tinha a ver com o relacionamento com os pais, ou seja, com a forma de agir dos adultos cuidadores. Alguns anos depois, ele nega essa ideia primária e afirma que existe um fator biológico para o diagnóstico, aparentando que a criança já nasce com essa inabilidade de se relacionar e que não tem a ver com a relação com os pais. No entanto, o estrago já estava feito! Suas primeiras ideias iriam repercutir muito na década de 60.
Ao mesmo tempo em que Kanner pesquisava e desenvolvia suas teorias sobre autismo nos Estados Unidos, em 1944, Hans Asperger, em Viena, na Áustria, descrevia casos com características semelhantes ao que denominou “Psicopatia Autística”. Os pacientes observados por Asperger, todos meninos, apresentavam a preservação das funções cognitivas, um desenvolvimento da linguagem de acordo com o esperado no desenvolvimento humano e, algumas vezes, até mesmo apresentando uma linguagem mais rebuscada. As observações apontavam também para um déficit nas interações sociais e a presença de comportamentos estereotipados (WING, 1991; SHEFFER, 2019; SILVA, 2021). Asperger acreditava em causas orgânicas para explicar o que denominou “Psicopatia Autística”.
Como Asperger tinha suas publicações na língua alemã, em plena segunda guerra mundial, foi apenas no ano de 1981, por meio de pesquisas de Lorna Wing, médica psiquiatra inglesa, também pesquisadora na área do autismo, que o nome de Asperger ficou mundialmente conhecido e foi introduzido no vocabulário médico o termo Síndrome de Asperger.
A introdução da obra de Asperger modificou a ideia do autismo na década de 1990. Os psiquiatras passaram a vê-lo como um transtorno de espectro que incluía crianças com características variadas. O diagnóstico se expandiu da ideia de Kanner, de indivíduos que via como bastante deficientes, limitados na fala e na habilidade de interagir com os outros, para uma descrição da personalidade que pode incluir gênios matemáticos que se sentem socialmente desconfortáveis (SHEFFER, 2019, p.12).
Retomamos a questão da parentalidade como causa do autismo, pois aparece na história um novo personagem: Bruno Bettelheim, um psicólogo judeu norte-americano, nascido na Áustria, que interpretou as perspectivas elencadas de Kanner e desenvolveu uma teoria que se sustentava no conceito de “mãe-geladeira”.
Bettelheim defendia que o autismo seria um mecanismo de defesa elaborado pela criança que se via diante de situações que considerava ou sentia como ameaçadoras. Foi com o lançamento de seu livro “A Fortaleza Vazia” que passou a ser reconhecido como um especialista na área do TEA (FEINSTEIN, 2010). Nesse livro, Bettelheim atribuía como causa do TEA o mecanismo de defesa construído pelas crianças como resultado do distanciamento afetivo e emocional das mães.
Diversas vezes ele se referia às mães como frias, distantes, práticas, vazias de sentimentos. Dessas percepções surgiu o termo “mãe-geladeira”. Apesar de, em vários momentos, o livro falar da família, do ambiente familiar, observou-se uma ênfase na figura materna. As ideias de Bettelheim foram acolhidas no campo científico e aceitas internacionalmente, referendadas pela sociedade da época que buscava as causas do autismo.
Bettelheim se suicidou aos 86 anos de idade, nos anos 90, já sem credibilidade na comunidade científica. Foi descoberto que suas experiências foram exageradas e sem comprovação científica, acusado também de expor as crianças que atendia a situações humilhantes e a agressões. Além disso, vieram à tona descobertas importantes sobre sua formação, por exemplo: a invenção de títulos acadêmicos, assim como a de ter sido discípulo de Freud, as quais usava para dar credibilidade a seus “ditos”.
A concepção da “mãe-geladeira” persistiu por décadas e ainda é levantada por médicos sem esclarecimentos e profissionais da educação. Isso acabou gerando um sentimento de culpabilização da mãe, direcionando mais essa carga à situação, que já não é fácil, com seu filho ou filha.
Uma das necessidades atuais é poder compreender que essa concepção não pode ser perpetuada, pois não há culpados no desenvolvimento do TEA. A família precisa ser tão acolhida como a criança, jovem ou adulto com TEA. A escola e o AEE precisam fazer esse papel de tessitura importante entre família e professores, construindo um trabalho colaborativo e persistente. Quando a escola acolhe as famílias, cria espaço de escuta, se apropria do conhecimento que a família tem sobre o TEA, o processo de pertencimento se desenvolve com mais qualidade. E é exatamente nisso que precisamos insistentemente trabalhar: na colaboração família e escola, tessitura dos diferentes saberes e fazeres.
Milhares de famílias foram afetadas por essa concepção, crianças foram afastadas de seus pais, institucionalizadas, como sendo a única solução para que pudessem se desenvolver.
Em 1964, Bernard Rimland, pai de um menino com autismo, publicou o livro “Autismo infantil: A síndrome e suas implicações para uma teoria neural do comportamento”. Nesse livro, Rimland acabou por quebrar os paradigmas até então estabelecidos por Bettelheim, por meio de uma pesquisa intensa, onde chegou à conclusão de que o autismo poderia ser resultante de desordens bioquímicas e com componentes genéticos.
Foi a psiquiatra Lorna Wing, da Inglaterra, que apresentou a teoria de que o autismo não era uma situação estática, podendo existir diferenças de configuração em cada sujeito (SILBERMAN, 2015). Ela constrói a primeira noção de espectro, ficando conhecida como “tríade do autismo”, ou seja, diferenças de desenvolvimento em três áreas significativas: comunicação, socialização e comportamentos. Ela afirmava que poderia ou não haver prejuízos na mesma intensidade, ou maneiras diferentes de se manifestar e que, ainda, poderiam variar conforme o momento do desenvolvimento dos sujeitos.
Lorna Wing inaugura, na história do TEA, um aspecto importante para compreendermos os indivíduos que recebem esse diagnóstico, propondo a ideia do espectro, pela qual afirmava que não existem duas pessoas com a mesma configuração e intensidade no autismo. O autismo toca cada sujeito de maneira singular: nenhuma teoria ou tratamento, com suas técnicas e métodos, deve ser protocolado da mesma maneira, pois isso subtrairia dos sujeitos um universo de possibilidades pelos quais seria possível se desenvolver.
Na década de 80, o autismo começou a ser pensado conceitualmente como diferença. Destacamos que Kanner e Asperger foram marcos nas pesquisas sobre o autismo e que a partir dos seus relatos outros tantos pesquisadores, como pudemos ver até aqui, despontaram, buscando responder lacunas e procurando acrescentar conhecimentos para auxiliar na busca de melhores condições de vida e desenvolvimento de políticas públicas que atendessem a essa população.
A história sobre o TEA, desde Kanner e Asperger, aponta para a presença de diferentes teorias que buscam explicar as causas do transtorno, marcando as propostas pedagógicas e terapêuticas, bem como as formas de relações a serem estabelecidas, “incluindo ou excluindo os indivíduos, desconsiderando, muitas vezes, quem é a pessoa e valorizando apenas o que diz o diagnóstico” (SILVA, 2021, p. 53).
2.2 Transtorno do Espectro Autista: do que estamos falando, afinal?
Muitas vezes, quando alguém recebe o diagnóstico de autismo passa a ser percebido apenas por meio do que diz esse diagnóstico. Ou seja, para algumas pessoas, definir um diagnóstico supõe definir quem essa pessoa é, o que ela pode ou não realizar, esquecendo que qualquer pessoa pode e deve mudar durante o tempo, ao vivenciar experiências sociais, cognitivas, emocionais, entre outras.
Na educação precisamos evitar o que chamamos de “colagem de diagnóstico”, ou seja, que o aluno ou aluna sejam percebidos apenas como autistas, como se tudo o que vivenciam todos os dias, suas ideias, sentimentos e desejos perdessem a importância. “Ser autista” se torna mais importante do que ser alguém que tem suas características, desejos e necessidades. Isso acaba por anular o sujeito que existe naquele educando, servindo muitas vezes de barreira para seu desenvolvimento.
A terminologia que dá nome ao que entendemos como TEA sofreu diversas alterações durante as décadas: após os primeiros estudos, desde que foi descrita por Kanner, em 1943, como “autismo infantil”, chegando ao uso atual, como Transtorno do Espectro do Autismo, diagnóstico vinculado ao DSM-5.
A nova nomenclatura, proposta pelo DSM-5 2, como Transtorno do Espectro Autista, também acolhida pelo CID 11, sustenta o TEA como um continuum de características que podem variar sua manifestação em cada indivíduo, de acordo com as experiências que vive ou a necessidade de apoio que necessita.
Podemos afirmar que, atualmente, o Transtorno do Espectro Autista é considerado um transtorno do neurodesenvolvimento, ou seja, um grupo de condições que têm sua origem no período gestacional ou na infância, que podem acarretar prejuízos no funcionamento pessoal, social, acadêmico ou profissional.
O DSM-5 afirma que “os déficits de desenvolvimento variam desde limitações muito específicas na aprendizagem ou no controle de funções executivas até prejuízos globais em habilidades sociais ou inteligência” (APA, 2013, p. 31).
O que é o Transtorno do Espectro Autista?
Quando falamos em neurodesenvolvimento estamos tratando, especificamente, do desenvolvimento do sistema nervoso, incluindo a motricidade, as competências sensoriais, a comunicação, os comportamentos variados, as competências cognitivas, os afetos e as emoções.
Os principais Transtornos de Neurodesenvolvimento são: Deficiência Intelectual, Transtornos da Comunicação (Transtorno da Linguagem, Transtorno da Fala, Gagueira, Transtorno da Comunicação Social, Transtorno da Comunicação sem outras especificações), Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH); Transtornos Específicos da Aprendizagem (com prejuízo na leitura, na escrita e na matemática), Transtornos Motores (Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação e Transtorno do Movimento Estereotipado), Transtornos de Tique (Transtorno de Tourette, Transtorno de Tique Motor ou Vocal Crônico e Transtorno de Tique Transitório) e, aquele a que se destina esse curso, o Transtorno do Espectro Autista.
A ocorrência de mais de um transtorno nos indivíduos é mais frequente do que se imagina. Em alguns casos, a apresentação clínica inclui sintomas tanto de excesso quanto de déficits, além de atrasos em atingir os marcos de desenvolvimento. Por isso, frequentemente, ouvimos a expressão “comorbidade no TEA”. Isso quer dizer que, além do TEA, o indivíduo apresenta outro transtorno ou deficiência.
As pesquisas científicas apontam que, aproximadamente, 70% das pessoas que se encontram dentro do espectro autista podem apresentar diferentes comorbidades, ou seja, outras condições que podem se manifestar junto ao transtorno do espectro autista. As mais comuns são: deficiência intelectual, déficits na linguagem, ansiedade, hiperatividade, alterações no sono, Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), epilepsias, Transtorno do Processamento Sensorial, entre outras. Autores da área apontam que 48% dos indivíduos podem apresentar mais de uma comorbidade.
Pesquisas recentes afirmam que entre 45% e 60% das pessoas com TEA apresentam como comorbidade a Deficiência Intelectual. As alterações sensoriais ficam em uma taxa entre 70% e 95% (BOSA; TEIXEIRA, 2017).
Trazemos esses dados para ratificar que as expressões do TEA são diversas, únicas e singulares. Por isso, é necessário compreender o indivíduo e sua subjetividade.
2.3 Transtorno do Espectro Autista: características
Aprendemos muito até aqui. Agora, vamos aprofundar em algumas características basilares do TEA, para que possamos compreender os indivíduos que chegam até nós no AEE.
Você se recorda das áreas nas quais o transtorno transcorre? Essas podem aparecer em maior ou menor intensidade nos diferentes indivíduos. Nesse sentido, é por isso que falamos em “autismos”, porque nunca temos uma só forma de perceber essas características.
Conceitualmente, podemos definir o Transtorno do Espectro do Autismo como um transtorno do neurodesenvolvimento, constituído por um conjunto comum de características, uma díade de características, cientificamente falando, que se torna adaptável conforme a apresentação clínica individual em cada pessoa.
Destaca-se que os critérios para o diagnóstico do TEA na versão do DSM-5 são prioritariamente:
Déficits na comunicação e interação social;
Presença de padrões de comportamentos e interesses restritos e repetitivos.
Essas características estão presentes no desenvolvimento de forma precoce e causam prejuízos em várias áreas do funcionamento da pessoa. Posteriormente, trataremos sobre cada uma destas características destacadas.
Ao falarmos em TEA, colocamos nesse conceito alguns diagnósticos que até 2013 encontravam-se categorizados de forma separada, como: Autismo Infantil, Autismo Atípico, Síndrome de Rett, Transtorno Desintegrativo da Infância, Síndrome de Asperger, entre outros, alocados na categoria conhecida como Transtorno Global do Desenvolvimento, apontada anteriormente.
À medida que novas pesquisas são realizadas, conceitos são revisados, novas descobertas médicas surgem e os documentos que servem de suporte para o diagnóstico também são alterados.
Por que saber sobre isso? Na escola, o professor do AEE se depara, muitas vezes, com laudos diagnósticos que indicam, por meio de um número, o que o aluno ou aluna apresenta em seu desenvolvimento, o que tem interferido no desenvolvimento das habilidades acadêmicas e o que requer o olhar especializado oferecido pelo serviço do AEE.
Atualmente, no Brasil e no mundo, temos dois compilados de diagnósticos que auxiliam os médicos a definirem o diagnóstico, são eles:
O Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) ou Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (título adotado no Brasil) é um manual que enumera diversas categorias de transtornos mentais e os critérios para a realização do diagnóstico desses transtornos. Foi elaborado segundo as orientações da Associação Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association – APA), publicado em 2013 e é utilizado em diferentes países, por profissionais da área da saúde, pesquisadores, órgãos políticos, educacionais e farmacêuticos.
O CID ou Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde – apresenta os códigos referentes à classificação de doenças com uma grande variedade de sintomas. Esse documento é publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e é revisto periodicamente, encontrando-se, hoje, na versão 10. Em 2019, aconteceu a atualização desse material para que, em janeiro de 2022, entrasse em vigor a versão 11.
Você já escutou as seguintes frases:
“Pedro tem um autismo leve.”
“Joana tem um autismo severo?”
Afinal, o que são os níveis de autismo?
Importante afirmar que esses níveis se referem ao tipo de auxílio que os indivíduos irão necessitar para viver no cotidiano, suas experiências sociais, cognitivas e emocionais. Não se trata, então, de o indivíduo estar em um nível severo ou leve, mas qual a intensidade de apoio ele necessita.
Abaixo, apresentamos os três níveis de apoio que podemos ter:
Tabela 1: Níveis de apoio segundo o DSM-5
false
Níveis de apoio Explicação do nível
1(exigindo apoio) Esse nível, também classificado como leve, é aquele em que o comprometimento e a necessidade de apoio ao indivíduo são pequenos. Não quer dizer que não haja necessidade de atendimentos clínicos ou educacionais, mas que as características estão mais centradas nas dificuldades de interação.
Características
Podem apresentar dificuldade nas interações sociais (de manter e iniciar as mesmas); escolha por uma única atividade que lhe confere organização e domínio; problemas com planejamento, execução e organização; resistência às alterações de rotinas; e pequenas dificuldades em autocuidado.
2(exigindo apoio substancial) Explicação do nível
Esse nível, classificado como moderado, aponta uma maior dificuldade nas interações sociais, com emissão de respostas curtas, podendo apresentar ecolalia, atrasos na linguagem ou até a ausência dela, com compreensão literal da fala do outro.
Características
Aqui, acontece um prejuízo intenso nas capacidades comunicacionais sociais pela via verbal e não verbal; dificuldades significativas nas alterações de rotinas, apresentando sofrimento frente a essas alterações; nas interações sociais, apresenta poucas respostas; desorganizações motoras, podendo aparecer agressão ao outro ou a si mesmo; maior necessidade de previsibilidade dos acontecimentos, ou seja, inflexibilidade do pensamento e dos comportamentos; interesses e comportamentos restritos/repetitivos que interferem em suas ações.
3(exigindo apoio muito substancial) Explicação do nível
Esse nível, classificado como severo, aponta uma dificuldade intensa do indivíduo em várias áreas, apresentando dependência completa de um adulto em todas as áreas do desenvolvimento; intensas dificuldades de comunicação.
Características
Dificuldade intensa na comunicação; normalmente, uma ausência da linguagem verbal; muita inflexibilidade do pensamento e comportamento; necessitam de muito apoio para realizar as tarefas do dia a dia, como as de autocuidado e higiene pessoal; e, geralmente, acompanham um prejuízo intelectual (deficiência intelectual).
Procurando dar destaque a alguns aspectos, falaremos mais sobre esses níveis de apoio.
Geralmente, no nível 1, o diagnóstico acontece entre 7 e 8 anos. Nos casos de diagnóstico na adolescência ou na fase adulta, as maiores dificuldades são as interações sociais, onde o indivíduo apresenta dificuldades na compreensão de linguagens figuradas, o que pode atrapalhar a comunicação em diversas situações sociais. No entanto, ao receber o auxílio adequado, tais características podem diminuir de intensidade e são estabelecidos recursos subjetivos capazes de gerir as demandas cotidianas. Os indivíduos diagnosticados no nível 1 apresentam apego às rotinas, que servem para organizá-los e acalmá-los. Nesse sentido, mudanças de rotinas atrapalham a independência do indivíduo com autismo.
No nível 2, o diagnóstico pode ser mais preciso e ocorre, geralmente, entre 18 e 36 meses; mesmo com suporte, as dificuldades para entender as situações que envolvem metáforas e brincadeiras persistem; os comportamentos estereotipados, fixos e restritos estão bem presentes, dificultando as relações e as realizações de atividades; a linguagem também exige suporte, pois há dificuldade de compreensão e de expressão.
No nível 3, o diagnóstico pode acontecer entre 12 e 24 meses; há uma extrema dificuldade de lidar com mudanças, necessitando de muita antecipação; dificuldades persistentes nas relações sociais, necessitando de atenção integral nas atividades do cotidiano.
Percebemos que o TEA não é uma condição estável e inalterada. Falamos no espectro porque é possível que uma pessoa avance em relação ao momento inicial do diagnóstico ou que características se cristalizem, tornando mais inflexíveis alguns comportamentos. Isso acontece em função das experiências que serão oportunizadas para o indivíduo e do trabalho colaborativo realizado entre família, escola e atendimento clínico especializado.
Símbolo da neurodiversidade, que é o símbolo do infinito colorido.
Quanto mais cedo ações e medidas forem tomadas para com o indivíduo com TEA, melhores são as chances de um desenvolvimento integral e com mais flexibilidade nos pensamentos e ações.
2.4 Transtorno do Espectro Autista – Incidência e Prevalência
No Brasil, falar sobre Transtorno do Espectro Autista é partir de números imprecisos sobre quem são esses indivíduos, onde estão e, principalmente, quantos são - perguntas essas que seriam respondidas a partir da publicação da Lei n.º 13.861/19, de 18 de julho de 2019, que incluiria no censo demográfico as especificidades inerentes ao TEA.
Por enquanto, continuamos com uma estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), que anuncia a existência de 70 milhões de pessoas com TEA em todo o mundo, sendo 2 milhões somente no Brasil.
Segundo o Centro de Controle de Doenças e Prevenção do governo dos Estados Unidos (CDC), em pesquisa divulgada em 2020, o índice, que serve de parâmetro para o mundo, apresenta a existência de 1 pessoa com TEA para cada 54 nascidos. O destaque maior da pesquisa, além da constatação do aumento significativo de casos, foi a divulgação de que o TEA está presente em todos os grupos raciais, étnicos e socioeconômicos.
Mesmo o autismo estando em todas as classes, raças e etnias, ainda há dificuldade de identificação e de acesso aos tratamentos para a população com menores condições sociais, que necessita do sistema público de saúde, o qual, mesmo com todo o avanço dos últimos anos, ainda não chegou ao patamar de conseguir atender todas as demandas dessa população.
Até os dias de hoje, apenas um estudo-piloto sobre a incidência do autismo no Brasil foi realizado. O estudo contou com o apoio da Universidade Presbiteriana Mackenzie, na cidade de Atibaia, em 2011 e indicou a incidência de autismo em 1 para cada 367 nascidos (PAULA et. al., 2011). Este estudo, assim como outras pesquisas mundiais, consta na plataforma prevalence.spectrumnews.org. A prevalência em meninos se mantém, como já apresentado em pesquisas anteriormente realizadas, ou seja, 4 meninos nascidos para 1 menina.
Por enquanto, no Brasil, toda e qualquer projeção ainda é baseada na estimativa da população com TEA em diferentes partes do mundo, como apresentado na tabela abaixo:
PAÍS OU REGIÃO ÍNDICE DA POPULAÇÃO COM TEA
Estados Unidos 1,3%
Coréia do Sul 2,64%
China 1%
Japão 1,81%
Europa 1%
Fonte: Baseada nos dados dos autores Joseph; Soorya e Thurm, 2016.
Segundo dados extraídos do site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 3, em 2021, o Brasil tinha uma população estimada de 213,6 milhões de habitantes. A estimativa das ONGs que apoiam e coletam dados sobre o TEA é de que a porcentagem de pessoas com TEA seja de 1%, ou seja, uma média de 2 milhões de brasileiros poderiam ter o diagnóstico de TEA. Esse número é considerado alto e reforça a necessidade de formação de professores, da conscientização da população e da ampliação dos serviços públicos de saúde e educação para acolherem essa população.
Vemos, muitas vezes, os meios de comunicação veicularem reportagens com o questionamento sobre o aumento da taxa de TEA no Brasil e no mundo. Algumas pessoas, inclusive, falam em pandemia do TEA. Realmente, há um aumento das taxas, o que não significa ser uma pandemia, mas a existência de um maior conhecimento da área médica, que realiza os diagnósticos e que provoca ampla divulgação a respeito da importância de um diagnóstico precoce para um melhor prognóstico do desenvolvimento do indivíduo com TEA (JOSEPH; SOORYA; THURM, 2016).
Por outro lado, autores como Wing, Gould e Gillberg (2011) defendem que o diagnóstico do TEA teve suas taxas ampliadas a partir das descobertas de Asperger, pois incluiu indivíduos com o desenvolvimento cognitivo preservado e linguagem com vocabulário e gramática adequados.
As discussões a respeito do papel do DSM-5 ou do CID na ampliação do número de casos são amplas e com diferentes abordagens, além de demandarem uma reflexão sobre o papel da sociedade na patologização dos seus indivíduos, que leva à busca de um diagnóstico em detrimento de qualquer diferença presente no outro. Silva (2016) assinala em seus estudos que, historicamente, o olhar médico recebeu e ainda recebe uma importância na sociedade moderna.
O destaque atribuído ao saber médico promove a “medicalização” dos diferentes espaços sociais. Essa medicalização invade os espaços escolares, moldando as práticas pedagógicas e ditando regras e metodologias a serem utilizadas pelos professores. Nos últimos anos, o número de publicações que denunciam o excesso de medicalização e a busca constante da normatização dos indivíduos não para de crescer. Autores como Pignarre (2001), St-Onge (2004); Lane (2007); Blech (2008); Watters (2010a), Watters (2010b); Greenberg (2010); Kirsch (2010); Whitaker (2010) e Ceccarelli (2010) debateram o assunto.
A incidência tem crescido, isso é fato. Em março de 2020, o CDC 4 (2020) lançou a nova prevalência de 1 para 54 nascidos; já em 2018, o número era de 1 para cada 59 nascidos. Permanece a predominância de quatro homens para uma mulher nascida com TEA.
O diagnóstico traz implicações para as famílias e os indivíduos com TEA. Se por um lado ele favorece o acesso às políticas públicas de Saúde e Educação, oferecendo recursos e tratamentos, pode, ao mesmo tempo, acabar rotulando os indivíduos, engessando as instituições em suas práticas pedagógicas. O diagnóstico, na maioria das vezes, "reforça, na escola, a crença e a espera dos professores pela palavra e prescrição do médico que lhe digam o que fazer com o grupo de estudantes que não aprendem” (SILVA, 2016b, p. 98).
O diagnóstico, em algumas vezes, é utilizado pelas instituições escolares para disfarçar quem é o aluno e como acontece seu processo de constituição subjetiva. Ainda há, nos espaços escolares, um discurso que defende que todas as pessoas se enquadrem em um sistema. Esse enquadramento aumenta o número de doenças mentais nos diferentes manuais 5, tornando esse processo de diagnosticar, muitas vezes, um negócio rentável. Atrelados aos diagnósticos, nos apresentam “sintomas”, que por sua vez, supõem a necessidade de uma medicação para adequar o indivíduo na sociedade, buscando a normalização.
É importante destacar que não há necessidade de um diagnóstico ou um laudo para que o indivíduo seja atendido pelo AEE da escola.
A Nota Técnica n.º4/2014 afirma que cabe ao professor atuante no AEE elaborar o Plano de Atendimento Educacional Especializado, que servirá como documento comprobatório de que a escola reconhece a necessidade, não só da matrícula do estudante avaliado, mas, de assegurar o atendimento às suas necessidades pedagógicas.
A escola não pode considerar imprescindível a apresentação de um laudo médico, ou seja, um diagnóstico clínico, já que o AEE constitui um atendimento prioritariamente pedagógico.
Socialmente, utiliza-se de discursos científicos e médicos para apresentar a singularidade de cada indivíduo resumida a sintomas, deficiência e anomalias. Nesse processo, que impacta as práticas escolares, criando barreiras à inclusão, a expressão da subjetividade, a criatividade de cada indivíduo e seus atos espontâneos são considerados desvios que necessitam ser normatizados.
2.5 Transtorno do Espectro Autista: Características Basilares
Existem diversas configurações subjetivas produzidas a respeito das características e dos funcionamentos de pessoas com TEA que enquadram esse indivíduo como alguém incapaz, sem condições de aprendizagem ou com comportamentos tão diferentes que necessitam de um atendimento individualizado. Essas configurações subjetivas não favorecem os processos inclusivos do indivíduo com TEA.
Entre elas, destaca-se o discurso de que não fazem contato visual, não expressam afeto, vivem em um mundo particular, não olham, não suportam o toque, são agitados, apresentam comportamentos agressivos ou, por outro lado, são hiperinteligentes, mas estranhos. Se falam, não são vistos como pessoas que se encontram dentro do espectro.
Embora as configurações subjetivas apresentem, em alguns casos, fatos equivocados ou exacerbados em função da falta de conhecimento a respeito da questão, sabe-se que alguns déficits centrais se fazem presentes em vários indivíduos, sendo essas as áreas basilares do TEA.
Explicaremos cada uma dessas áreas aprofundando o que as envolvem, bem como seus desdobramentos, levando sempre em consideração que a intensidade com que as características se apresentam em cada indivíduo depende de sua história de vida, da maneira como se expressa, da presença ou não de comorbidades, como já vimos anteriormente.
Cabe destacar que, o conceito de déficits tem a ver com dificuldades e barreiras, não com uma “falta”.
2.5.1 Déficits persistentes na comunicação e interação social em múltiplos contextos.
Segundo o documento DSM - 5, estes déficits podem acontecer,
[...] dependendo da idade, do nível intelectual e da capacidade linguística do indivíduo bem como de outros fatores, como história de tratamento e apoio atual. Muitos indivíduos têm déficits de linguagem, as quais variam de ausência total da fala, passando por atrasos na linguagem, compreensão reduzida da fala, fala em eco (ecolalia) até linguagem explicitamente literal ou afetada. (APA, 2013, p. 53).
Esse critério para o diagnóstico desdobra-se em diferentes manifestações e características que se configuram em cada indivíduo. Nesse primeiro aspecto que envolve comunicação social e interação social, podemos ter características que envolvem diferentes ações.
Quando comentamos sobre a dificuldade com a reciprocidade socioemocional, referimo-nos à dificuldade do indivíduo em iniciar as interações sociais ou em responder a elas. Mesmo que queira se comunicar, ao iniciar a ação não sabe como proceder, e acaba, muitas vezes, focando apenas em seus interesses durante a conversa.
Também acontecem:
Dificuldades nos comportamentos comunicativos não verbais, usados em uma interação social, as quais variam de acordo com a qualidade do olhar para o interlocutor, a distância em que ele se posiciona, a dificuldade na compreensão do uso de gestos e reconhecimento de expressões faciais que auxiliam a entender como o outro se sente em determinada situação. Para pessoas com TEA, é bastante complicado a compreensão do outro e a observação do estado de espírito de alguém pelas expressões faciais.
Dificuldades para iniciar, desenvolver, manter e compreender relacionamentos, o que passa pela capacidade do indivíduo de adequar seu comportamento às diferentes situações sociais.
Ou seja, a pessoa não autista, quando entra em determinados locais, sabe o que esperam de sua postura, da forma de agir, sabe, por exemplo, o que conversar com um amigo, pois conhece seus gostos, interesses, etc. A pessoa com TEA não sente facilidade nas exigências dos relacionamentos.
Dificuldades ou total ausência do compartilhamento de brincadeiras, experiências, prazeres e interesses que se manifestam pela passividade ou por abordagens que, algumas vezes, podem parecer agressivas ou disruptivas. A ausência do jogo simbólico, bem como a dificuldade de criar situações de imaginação compartilhada, acabam gerando um brincar inflexível, com regras rígidas.
Ao falarmos em comunicação estamos pautando aspectos que vão para além da linguagem oral. Não se trata apenas de identificar se o aluno fala ou não, se é ecolálico, se usa a fala apenas para que desejos sejam atendidos. É preciso estar atento para a qualidade da comunicação, ou seja, como ela acontece e quais estratégias comunicacionais o indivíduo utiliza.
Pode acontecer um atraso na constituição da fala ou a falta de uso da linguagem expressiva, que passa pelo uso, com sentido, de todos os aspectos da comunicação: gestos, expressões faciais, linguagem corporal, ritmo e modulação na linguagem verbal.
O que o DSM-5 (2013) classifica como distúrbios do comportamento não verbal, são caracterizados como:
[...] uso reduzido, ausente ou atípico de contato visual (relativo a normas culturais), gestos, expressões faciais, orientação corporal ou entonação da fala. Um aspecto precoce do transtorno do espectro autista é a atenção compartilhada prejudicada, conforme manifestado por falta do gesto de apontar, mostrar ou trazer objetos para compartilhar o interesse com outros ou dificuldade para seguir o gesto de apontar ou o olhar indicador de outras pessoas. Os indivíduos podem aprender alguns poucos gestos funcionais, mas seu repertório é menor do que o de outros e costumam fracassar no uso de gestos expressivos com espontaneidade na comunicação. Entre adultos com linguagem fluente, a dificuldade para coordenar a comunicação não verbal com a fala pode passar a impressão de “linguagem corporal” estranha, rígida ou exagerada durante as interações. O prejuízo pode ser relativamente sutil em áreas individuais (p. ex., alguém pode ter contato visual relativamente bom ao falar), mas perceptível na integração insatisfatória entre contato visual, gestos, postura corporal, prosódia e expressão facial para a comunicação social (APA, 2013, p. 54).
O contato visual atípico ou a ausência da possibilidade de o indivíduo realizar esse contato pode, muitas vezes, dificultar a constituição do que chamamos de atenção compartilhada. A atenção compartilhada é a possibilidade de seguir com o olhar aquilo que é apontado pelo outro ou de apontar, mostrar e apresentar objetos para compartilhar com as pessoas. Nesse sentido, também pode acontecer uma atenção multifocal, com muita ou alguma inabilidade em restringir o foco contextual relevante.
Na comunicação, estão presentes elementos como o olhar, o movimento do corpo e os gestos, que fazem a engrenagem da comunicação funcionar. Não podemos esquecer de avaliar a disposição do indivíduo para iniciar uma conversa ou para mantê-la com o outro. É necessário, ainda, observar a repetição das palavras, ou seja, a ecolalia 7 ou o uso anômalo da linguagem, que é a formação das frases sem a ordem gramatical específica, assim como os neologismos, que é o uso de palavras inventadas.
Aspecto importante aqui a ser ressaltado é que independentemente do nível do déficit verbal ou não verbal, ou mesmo que o déficit não exista, ou seja, quando as capacidades linguísticas estão intactas, no TEA o uso da linguagem para comunicação social recíproca está prejudicado. O sujeito não faz uso dessa habilidade de linguagem para comunicar-se com o outro, para trocar informações, ou simplesmente para trocar ideias ou impressões sobre algo que vê, ou gosta. A fala muitas vezes, quando aparece, mostra-se em uma forma ecolalica, ou resumida a palavras isoladas sem mostrar uma função simbólica de comunicação. A estrutura frasal apresenta-se de forma precária, com a presença de inversão pronominal (SILVA, 2016, p. 24).
Ainda em relação à linguagem, quando há a expressão verbal, pode acontecer alterações entonativas nas emissões verbais. Aqui, podem aparecer os sons autoestimulatórios 8, já em outros indivíduos pode até acontecer o mutismo. Muitas vezes, no processo de aquisição da linguagem, a criança com TEA apresenta uma inversão pronominal, falando de si na terceira pessoa, não empregando o ‘eu’ e referindo-se a si pelo nome ou por ‘ele’ ou ‘ela’.
É necessário pensar a respeito da qualidade das ações realizadas e não na quantidade do que o indivíduo realiza, ou na aferição do que faz ou não faz. O mesmo critério serve para se pensar sobre a “qualidade do comportamento social que perpassa a simples questão de isolamento físico, timidez ou rejeição do contato humano” (BOSA, 2002, p. 26).
É preciso refletir sobre a dificuldade do indivíduo em manter um contato social, afetivo e comunicativo de forma recíproca. A falta da reciprocidade, a impossibilidade momentânea ou permanente de manter uma sintonia com o outro, com seus desejos e vontades, com suas ideias e percepções é uma das marcas significativas do transtorno do espectro autista (BOSA, 2002).
As dificuldades da criança com TEA na reciprocidade emocional, ou seja, na capacidade de se envolver com outras pessoas e compartilhar ideias e sentimentos, ficam bastante evidentes. Quando pequenas, a dificuldade de iniciar as interações sociais, de compartilhar emoções e a capacidade de imitação também aparecem reduzidas. A presença da linguagem oral, ainda nas primeiras fases da infância, costuma ser unilateral, sem função social, usada mais para solicitar ou nomear do que para comentar, compartilhar sentimentos ou estabelecer um diálogo.
2.5.2 Padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades
Durante seu desenvolvimento, a pessoa com TEA pode apresentar, em maior ou menor grau, expressões de padrões fortemente ritualizados nos seus comportamentos que englobam movimentos motores, uso de objetos ou fala estereotipada e repetitiva. Significa um apego a rotinas e padrões, tornando, muitas vezes, difícil a ocorrência de mudanças no seu cotidiano.
As mudanças de rotina ou rituais, para algumas pessoas com TEA, podem causar muita ansiedade, chegando a tornar insustentável lidar, por exemplo, com mudanças de móveis, assim como, em um certo espaço, na ordem em que as atividades acontecem no cotidiano, nos caminhos que percorre para chegar a determinados locais. Percebe-se que para algumas pessoas com TEA a previsibilidade dos acontecimentos e das ações é necessária para sua organização. A antecipação dos acontecimentos, com informações detalhadas, auxilia no controle da ansiedade (SURIAN, 2010).
A resistência às mudanças pode se tornar um obstáculo quando se configura de uma maneira que impede o indivíduo de ter experiências diversificadas sobre o mesmo conceito, a mesma vivência ou aprendizagem, mantendo-o, muitas vezes, em atividades repetitivas.
Em contrapartida, a manutenção de atividades ou rotinas, a manutenção da mesma organização de espaços, materiais e da mesma alimentação, sempre, quando o indivíduo se encontra desorganizado pode ser calmante e organizador.
Aqui, há uma linha tênue que delimita o quanto algo é limitador ou não. A atenção do corpo docente e o olhar bem apurado do profissional do AEE precisa, constantemente, avaliar essa inflexibilidade do pensamento e refletir sobre a real necessidade da manutenção da rotina ou de algumas atividades, procurando, na medida do possível, flexibilizá-la, adaptando-a à situação cotidiana de vida de cada indivíduo.
2.5.2 Padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades
Durante seu desenvolvimento, a pessoa com TEA pode apresentar, em maior ou menor grau, expressões de padrões fortemente ritualizados nos seus comportamentos que englobam movimentos motores, uso de objetos ou fala estereotipada e repetitiva. Significa um apego a rotinas e padrões, tornando, muitas vezes, difícil a ocorrência de mudanças no seu cotidiano.
As mudanças de rotina ou rituais, para algumas pessoas com TEA, podem causar muita ansiedade, chegando a tornar insustentável lidar, por exemplo, com mudanças de móveis, assim como, em um certo espaço, na ordem em que as atividades acontecem no cotidiano, nos caminhos que percorre para chegar a determinados locais. Percebe-se que para algumas pessoas com TEA a previsibilidade dos acontecimentos e das ações é necessária para sua organização. A antecipação dos acontecimentos, com informações detalhadas, auxilia no controle da ansiedade (SURIAN, 2010).
A resistência às mudanças pode se tornar um obstáculo quando se configura de uma maneira que impede o indivíduo de ter experiências diversificadas sobre o mesmo conceito, a mesma vivência ou aprendizagem, mantendo-o, muitas vezes, em atividades repetitivas.
Em contrapartida, a manutenção de atividades ou rotinas, a manutenção da mesma organização de espaços, materiais e da mesma alimentação, sempre, quando o indivíduo se encontra desorganizado pode ser calmante e organizador.
Aqui, há uma linha tênue que delimita o quanto algo é limitador ou não. A atenção do corpo docente e o olhar bem apurado do profissional do AEE precisa, constantemente, avaliar essa inflexibilidade do pensamento e refletir sobre a real necessidade da manutenção da rotina ou de algumas atividades, procurando, na medida do possível, flexibilizá-la, adaptando-a à situação cotidiana de vida de cada indivíduo.
Atividade reflexiva de consolidação de aprendizagem
Não há maior ferramenta para o conhecimento do que o exercício atrelado à teoria. Escolha um aluno que você atende, que tenha atendido ou, ainda, que esteja em avaliação para o atendimento do AEE. Escreva sobre esse aluno, descrevendo suas ações, como reage às situações, como se aproxima das pessoas, como olha, entre outros tantos comportamentos. Depois, procure olhar para cada item descrito, identificando se o comportamento pertence ao item 1 ou ao item 2 das áreas de características basilares do TEA. Esse exercício te auxiliará a organizar os dados de uma avaliação por meio da observação.
2.6 Dificuldades do Processamento Sensorial
Você sabia que, muitas vezes, o indivíduo com TEA recebe tantas informações que o seu pensamento acaba por perder-se no processo de compreender o que se espera como resposta a determinada situação?
Dizemos que as pessoas com TEA apresentam uma maneira diferente de SER e ESTAR no mundo, porque sua interação com as informações primeiramente passa pelas sensações. Muitas vezes, a maneira como as informações do meio são percebidas pela pessoa com TEA pode causar ansiedade e medo, como também pode ser fonte de satisfação e prazer. Pode acontecer, para a maioria dos indivíduos com TEA, uma forma particular em processar os estímulos sensoriais, sejam eles auditivos, gustativos, olfativos, visuais, táteis, proprioceptivos 9 e vestibulares 10.
Você consegue imaginar como acontece a entrada de sensações para uma pessoa com TEA e como elas reagem a essas sensações?
Hoje, sabe-se que os estímulos sensoriais não são registrados adequadamente ou não são modulados de forma correta pelo cérebro, ou seja, pelo Sistema Nervoso Central da pessoa. A modulação sensorial se refere à capacidade neurofisiológica do sistema nervoso de ajustar as ações, ajustando os sinais sensoriais que transmitem informações sobre a intensidade, frequência, duração, complexidade e novidade dos estímulos.
Normalmente, a isso chamamos Disfunção da Integração Sensorial, que pode estar presente também no TEA. Há alguns indivíduos que não apresentam dificuldades na área em questão. Essa é uma avaliação bem específica que necessita de um olhar mais profissional da área da Terapia Ocupacional.
Atendimento educacional especializado:
Podemos ter indivíduos hiper-reativos aos estímulos, ou seja, pessoas que percebem os estímulos do ambiente com mais facilidade e de forma mais intensa. Por outro lado, temos as pessoas hiporreativas, que necessitam de muito esforço para sentir o estímulo. Conhecer o perfil sensorial do indivíduo auxilia muito nos planejamentos e na construção das propostas oferecidas no espaço escolar, bem como na organização dos ambientes, na busca por evitar a sobrecarga sensorial.
TPS - Transtorno de Processamento Sensorial em AUTISTAS
Com o objetivo de elucidar as características envolvidas em cada sentido e o tipo de reação que acontece com o indivíduo em cada área, apresentamos um quadro resumo. Abaixo de cada área, apresentamos algumas dicas de trabalho que podem ser realizadas na escola.
Sistema oral
Tem preferências por certas comidas (picantes, crocantes, quentes, entre outros);
Mordem frequentemente;
Roem unhas;
Colocam objetos na boca;
Mordem mobília, lápis e brinquedos que não servem para serem mordidos.
Evitam certas texturas de comidas;
Dificuldades para experimentar comidas novas;
Dificuldade de usar canudo;
Ânsia de vômito frequente, baba bastante e se engasga com facilidade;
Problemas com mastigação/deglutição;
Evitam comidas moles.
Sistema auditivo
Falam alto;
Colocam instrumentos musicais perto dos ouvidos e fazem sons altos em ambientes calmos;
Gostam de barulhos (ventiladores, ar-condicionado, água corrente, entre outros);
Preferem música e barulhos sempre em tom alto.
Choram, gritam ou ficam irritados com barulhos inesperados;
Tapam os ouvidos ou se escondem em eventos sociais;
Evitam barulhos de descarga de vasos sanitários, de água corrente e outros sons intensos e persistentes;
Ficam incomodados com sons agudos (apito, violino ou giz de quadro escrevendo no quadro, entre outros);
Ficam angustiados com sons metálicos (talheres batendo e xilofone);
Não gostam de sons altos.
Sistema tátil
Preferem roupas justas;
Necessidade de estar em constante movimento (girando, balançando, entre outros);
Constantemente estão sujos/bagunçados;
Alta tolerância a dor;
Tocam em tudo e colocam na boca;
Adoram vibrações;
Beliscam, batem e empurram;
Adoram ficar de cabeça para baixo ou ficar pendurados em sofás e cadeiras.
Medo de multidão;
Ficam agoniados com calças apertadas, vestir meias, calçados e com algumas texturas de roupas;
Evitam brinquedos que sejam/lambuzam ou molham;
Não gostam de serem lavados e penteados;
Extremamente sensíveis a cócegas;
Evitam abraços e qualquer contato físico;ndam na ponta dos pés.
Sistema visual
Olham fixamente para luzes, sol e objetos em movimento;
Seguram objetos pertos de si para olhar;
Não percebem a presença de novas pessoas ou objetos no ambiente;
Se perdem na leitura de textos;
Procuram estímulos visuais como ventiladores, peões, texturas, cercas, entre outros;
Evitam luz solar e brilhos;
Dores de cabeça, tonturas e enjoos quando usam a visão;
Medo de objetos em movimento;
Não gostam de contato ocular direto;
Dificuldade de separar tons e contrastes de cores;
Dificuldades para determinar distância;
Esfregam muito os olhos;
Tampam os olhos, olham de esquio e de lado.
Sistema olfativo
Gostam de cheiros fortes
Cheiram objetos que parecem estranhos para outros
Preferem comida com cheiros fortes
Frequentemente cheiram pessoas dificuldades de identificar cheiros, dificultando identificação do que podem ou não colocar na boca
Evitam alguns cheiros
Ficam agoniados/agitados com alguns cheiros
Engasgam-se com o cheiro de certas comidas
Falam para as outras pessoas que elas cheiram mal
Comidas não são atraentes
Evitam alguns alimentos e função do cheiro
Evitam locais públicos
Não gostam de ser abraçados ou ficar muito perto de outras pessoas
Sistema vestibular
Não conseguem ficar parados;
Necessidade de estarem em constante movimento (girando, balançando, pulando, entre outros);
Podem ser muito impulsivos;
Correm em todos os lugares (ao invés de andar);
Se colocam em risco dentro e fora de casa;
Adoram ficar de cabeça para baixo ou pendurados em sofás, cadeiras ou brinquedos nas praças.
Medo de atividades que envolvam movimentos;
Medo de parques, brinquedos que giram (carrossel, gira-gira), escadas e balanços;
Medo de elevador;
Não gostam de ser virados de cabeça para baixo;
Parecem ser desajeitados e descoordenados;
Parecem teimosos;
Evitam escadas ou seguram o corrimão fortemente com as duas mãos.
Sistema propioceptivo
Usam muita força;
Escalam objetos, pessoas e muros;
Andam fazendo barulho e pisam forte;
Pobre consciência corporal e espacial;
Mordem, batem e dão pontapés;
Preferem roupas justas;
Mordem roupas, lápis e dedos.
Parecem preguiçosos ou letárgicos;
Evitam atividades ativas como correr, pular e escalar;
Podem ser seletivos aos alimentos;
Preferem ficar parados;
Evitam ser tocados pelos outros;
Dificuldade para usar escada.
Parecem descoordenados;
Precisam olhar para se familiarizar com a tarefa.
2.7 TEA: Simbolização e Metáforas
Agora, vamos falar um pouco sobre as possibilidades de simbolização e as metáforas da linguagem.
Sabendo de toda essa gama de diferentes características que os indivíduos com TEA podem apresentar, com maior ou menor grau, enfatizamos a dificuldade em simbolizar, pois essa dificulta o brincar, a constituição da escrita, da linguagem e do conceito de número, pois essas são as formas simbólicas do conhecimento.
Em nenhum momento afirmamos que o indivíduo com TEA não possa simbolizar, mas sabemos que esse é um ponto a ser trabalhado com os alunos autistas.
Na exploração de objetos, focam sua atenção para detalhes e não para o todo, como rodar as rodinhas de um carrinho insistentemente, mas não o usam para brincar, como seria a função do objeto explorado.
Outra característica que aparece no TEA é a dificuldade de compreender, na linguagem, as metáforas utilizadas pelo outro. Para podermos construir linguagem, precisamos, muitas vezes, recorrer às nossas experiências concretas para, só então, podermos torná-las abstratas. Em muitos momentos, essa possibilidade de subjetivação parece se voltar ao concreto, ou seja, o que estamos falando não é o suficiente para a compreensão da ideia para algumas pessoas com TEA.
Ortiz Alvarez (2011, p. 185) explica que, por meio das metáforas, “entidades abstratas são tomadas como elementos concretos, o amor é conceitualizado como uma viagem, a alma, um pássaro, o corpo é um contêiner, e assim por diante”.
Afinal, o que é uma metáfora?
As características que trabalhamos até aqui se tornam mais intensas ou mais brandas de acordo, também, com as fases de desenvolvimento humano. Normalmente, as crianças autistas pequenas apresentam uma capacidade em desenvolvimento para iniciar as interações sociais e compartilhar emoções. A imitação, importante na aprendizagem humana, também aparece resumida. Outra dificuldade muito presente nas crianças autistas, que pode persistir na vida adulta, é a metarrepresentação, que é a capacidade que temos de entender as emoções do outro, de antecipar seu pensamento a partir de suas emoções ou ações, ou seja, o entendimento e suposição sobre o pensamento do outro.
Nessa fase da primeira infância, a linguagem, quando presente, costuma ser mais usada para solicitar recursos do que para dialogar e compartilhar a respeito de seus sentimentos e desejos. Se não há a comunicação oral, a criança acaba utilizando-se do corpo, dos gestos, de vocalizações a partir de sons recorrentes e/ou gritos para se fazer entender.
O cérebro de uma criança na primeira infância apresenta-se, ainda, imaturo, em processo de desenvolvimento e, por isso mesmo, mais sensorial. É normal que nessa fase aconteça uma predominância dos comportamentos repetitivos motores, ou seja, das estereotipias motoras e sensoriais (hiper ou hiporreatividade tátil, olfativa, visual, gustativa e auditiva).
As crianças com TEA, nesta faixa etária, tendem a apresentar diversos movimentos corporais, algumas vezes, intensos, que acabam por se repetirem em diversas situações. Normalmente, esses movimentos são os mesmos em situações de humor diferente. O que vai apontar uma alegria ou desconforto é a situação social em que eles vão aparecer.
Os comportamentos repetitivos, que podem ser considerados padrões repetitivos, também vão amadurecendo à medida que a criança vai se desenvolvendo, vivenciando experiências “promotoras de desenvolvimento das funções mentais” e a escola persistindo em “investir, como é próprio da educação, no potencial de cada um desses alunos em nos surpreender” (BELISÁRIO FILHO; CUNHA, 2010, p. 21).
É de grande importância nessa ação o trabalho colaborativo entre família, escola e os atendimentos clínicos prestados, pois as experiências em diferentes espaços e com variadas pessoas proporcionam novas aquisições, acomodações e a emergência de novas aprendizagens.
Com o crescimento, despontam os padrões repetitivos de ordem superior, que são comportamentos mais maduros. Os padrões repetitivos superiores são mais descentrados do corpo e englobam os rituais, rotinas e compulsões. Esses padrões podem ficar tão especializados, que acaba surgindo o hiperfoco, ou seja, habilidades além da média, quando o indivíduo apresenta uma forma intensa de concentração em um mesmo assunto, tópico ou tarefa ou um conhecimento extraordinário sobre algo ou algum assunto.
Pode não parecer, mas estes movimentos corporais da criança e os padrões de comportamentos de crianças mais velhas, adolescentes ou adultos demonstram uma mesma forma de funcionamento do cérebro, apenas os padrões cognitivos é que são diferentes. Compreender este processo nos ajuda a acolher a criança ou o jovem com TEA, seus movimentos e interesses. Ajuda-nos a pensá-lo a partir de quem ele é, do que gosta e não através de uma lista de características que precisam ser organizadas em um checklist.
Resumindo os aspectos abordados, segue uma tabela com algumas características mais frequentes associadas com o TEA:
Características frequentes associadas ao TEA
Sensorial
Hiper ou hiporreatividade táteis, auditivas, visuais, olfativas e gustativas; problemas de integração vestibular, proprioceptiva e busca de sensações, ou seja, dificuldades na recepção e resposta às sensações.
Linguagem
Ecolalia 11, dificuldades na linguagem expressiva e receptiva, uso idiossincrático 12 da linguagem, inversão de pronomes, dificuldades de compreensão de metáforas 13, neologismo e dificuldade do uso da linguagem em contextos sociais.
Perfil Intelectual
Melhor desempenho em tarefas que exigem processos perceptivos, memorização ou mecânicos; maior dificuldade em atividades que exijam raciocínio, abstração e interpretação; dificuldades nas brincadeiras de ‘faz de conta’, de forma espontânea; problemas de funcionamento metacognitivo e executivo; dificuldades nas funções executivas.
Atenção
Dificuldade de selecionar, manter e dividir a atenção; foco em aspectos de interesse individual e hiperfoco.
Memória
Estudos têm apontado problemas envolvendo a memória episódica no TEA, ao passo que a memória semântica se encontra mais preservada.
Motor
Andar na ponta dos pés, andar de forma irregular, estereotipias, dificuldades de imitação, movimentos estereotipados, atraso no desenvolvimento motor, dificuldades na coordenação motora fina e ampla; dificuldade na coordenação dos movimentos.
Processamento Perceptivo
Centrado nos detalhes; pensamento mais focado no concreto; dificuldades na compreensão abstrata das palavras.
Interação Social
Dificuldades de interação social, tendência a isolar-se, baixo uso e compreensão de gestos sociais e falta de conscientização de protocolos sociais.
Fonte: SILVA, 2021
2.8 Transtorno do Espectro Autista e a Aprendizagem
Você sabe como aprendemos? Até aqui, falamos que as pessoas com TEA têm outra maneira de ser e estar no mundo, então, como elas aprendem?
O cérebro humano processa as informações que recebe do mundo de uma forma complexa, única e sábia. Nosso cérebro constrói redes neuronais, através dos neurônios que estão presentes desde que nascemos e são as estruturas de base para nossas aprendizagens. Toda a aprendizagem de uma criança, adolescente ou adulto, assim como as experiências vivenciadas, circulam por estas redes neuronais.
O sono serve como ferramenta para a consolidação das aprendizagens realizadas durante o dia. É ao dormir que iniciamos o processo de memorização de tudo aquilo que captamos de informação, de tudo que se encontra em nossas redes neuronais. Ao despertar, reativamos as redes neuronais, acrescentamos novas informações e ao dormir reiniciamos o processo de memorização e consolidação da aprendizagem. Assim fazemos, sucessivamente, por toda a vida.
As pessoas com TEA também apresentam esse mesmo movimento, mas, apresentam também aquilo que chamamos de redes neuronais de preferência, assim o que não for agregado a essas redes acaba por ser esquecido, ou seja, não é memorizado. É como se houvesse apenas uma estrada a ser seguida, sem bifurcações e sem rotatórias. É muito comum as pessoas com essas preferências neuronais acordarem e as experiências terem sido esquecidas. Vemos muito isso na escola, no cotidiano, quando parece que os estudantes esquecem o que aprenderam e os professores ficam perdidos imaginando os motivos.
Conclusão
Concluiu-se que a dificuldade de educadores na compreensão do transtorno do espectro autista em função deste se apresenta de forma tão complexa. Compreender quem é o indivíduo por trás do diagnóstico demanda olhares profundos e qualificados para a sutileza das ações e dos recursos subjetivos escolhidos para dar conta das demandas cotidianas.
Para compreender o indivíduo, é preciso realizar um mergulho em sua forma de expressar-se no mundo, ser capaz de observar como se apresenta o TEA nas pessoas, quais características podem se tornar mais relevantes ou mais significativas e como elas acabam refletindo em ações e posturas dos indivíduos em seu cotidiano (SILVA; ROZEK, 2020, p. 14).
É preciso conhecer a pessoa com TEA em profundidade para ser mais assertivo em propostas educativas, olhar para o diagnóstico de forma sistêmica e considerar os aspectos qualitativos do desenvolvimento muito mais do que os quantitativos. Assim, valorizar as construções e entender o processo pelo qual o indivíduo constrói a aprendizagem, sem esquecer, em nenhum momento, a sua história de vida. Pensar dessa maneira, “possibilita observar os diferentes aspectos do indivíduo para além de uma visão positivista e racionalista de causa e efeito, ou de normatização dos comportamentos” (SILVA, 2021, p. 79).
Se conseguirmos centrar nosso olhar na pessoa e não somente no diagnóstico, compreenderemos a constituição do indivíduo como sujeito que assimila o diagnóstico de uma forma singular, por meio de suas experiências de vida e de suas produções de sentidos. Compreenderemos, por fim, a sua forma de SER e ESTAR no mundo, em que apresentar o TEA é apenas uma parte e não o todo do indivíduo.
Referências
AJURIAGUERRA, Julian de. Manual de Psiquiatria Infantil. 2. ed. Rio de Janeiro: Masson do Brasil Ltda, 1980.
BELISÁRIO FILHO, J. F; CUNHA, P. A Educação Especial na Perspectiva da Inclusão Escolar: transtornos globais do desenvolvimento. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Especial, 2010. BRASIL.
BOSA, Cleonice. AUTISMO: Atuais interpretações para antigas observações. In: BAPTISTA, Claudio Roberto; BOSA, Cleonice. Autismo e Educação. Reflexões e propostas de intervenção. Porto Alegre: Editora Artmed, 2002.
BOSA, C. A.; TEIXEIRA, M. C. T. V. (Org.). Autismo: avaliação psicológica e neuropsicológica. São Paulo: Hogrefe, 2017.
JOSEPH, Lisa; SOORYA, Latha; THURM, Audrey. Transtorno do Espectro Autista. São Paulo: Hogrefe Cetepp, 2016. Tradução: Lisandra Borges, Luis Fernando Longuin Pegoraro.
KANNER, Léo. Autistic disturbances of affective contact. Nerv Child, v.2, p. 217- 250, 1943. Disponível em: https://scholar.google.com.br/scholar?q=Autistic+disturbances+of+affective+contact.&hl=pt-BR&as_sdt=0&as_vis=1&oi=scholart&sa=X&ved=0ahUKEwjRo4Ccs7LZAhXDIZAKHfCICHYQgQMIKTAA. Acesso em: 02 de out. 2021.
ORRÚ, Silvia E. Aprendizes com autismo: aprendizagem por eixos de interesses em espaços não excludentes. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.
SHEFFER, Edith. Crianças de Asperger. As origens do autismo na Viena nazista. RJ: Editora Record, 2019.
SILVA, Karla Fernanda Wunder da. O Transtorno do Espectro Autista e os desafios na compreensão do sujeito: Contribuições da Teoria da Subjetividade. 2021. 276 p. Tese (Doutorado em Educação) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021. Disponível em: http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/9736. Acesso em: 15 jul. 2021.
SILVA, Karla Fernanda Wunder da; BINS, Katiuscha Lara Genro; (Orgs.). Tessituras do fazer pedagógico junto a alunos com transtorno do espectro autista: o cotidiano numa escola especial da Prefeitura de Porto Alegre. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Educação, 2016.
SILVA, Karla Fernanda Wunder; ROZEK, Marlene. Transtorno do Espectro Autista (TEA): mitos e verdades. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2020.
SILVA, Virgínia. A medicalização social e o estudante com autismo na escola. GOULART, Daniel Magalhães; ALC NTARA, Raquel de. Educação escolar e subjetividade: Desafios contemporâneos. Rockville, Global South Press, 2016b. P. 95 – 122.