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A ESCOLA COMO FERRAMENTA DE COMBATE AO PRECONCEITO LINGUÍSTICO

Nádia Cristhiane Mattoso Mareco

Elisângela Serencovick Fernandes

 

 

RESUMO

A variação presente em alguns grupos linguísticos pode ser a base de comportamentos preconceituosos, que se manifestam também nos ambientes escolares. À vista disso, considera-se primordial a abordagem deste fenômeno nas aulas de Língua Portuguesa, para que o aluno possa, ao compreender seu surgimento e problemas, reconhecer e lidar melhor com o preconceito linguístico. Este estudo tem como objetivo analisar como os preconceitos linguísticos e sociais se formam e a sua capacidade de influenciar a comunidade escolar, e seus prejuízos para o bom desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem. A presente pesquisa apresenta as bases teóricas fundamentais para a compreensão do fenômeno de preconceito linguístico e possibilidades de ação para a mitigação do problema.

 

PALAVRAS-CHAVE: Variação linguística; Preconceito linguístico; Escola; Ensino de Português; Sociolinguítica.

 

 

ABSTRACT:

The variation present in some language groups may be the basis of prejudiced behavior, which is also manifested in school environments. In view of this, it is considered essential to approach this phenomenon in Portuguese language classes, so that the student can, when understanding its emergence and problems, recognize and better deal with linguistic prejudice. This study aims to analyze how linguistic and social prejudices are formed and their ability to influence the school community, and their damage to the good development of the teaching-learning process. This research presents the fundamental theoretical foundations for understanding the phenomenon of linguistic prejudice and possibilities of action to mitigate the problem.

 

KEYWORDS: Linguistic variation; Linguistic prejudice; School; Teaching Portuguese; sociolinguistics.

 

 

INTRODUÇÃO

 

A variação linguística é uma característica própria das línguas que revela a heterogeneidade sociocultural de seus falantes, e se exibe nas interações sociais que acontecem nos mais diversos espaços e situações. Assim sendo, os indivíduos adaptam sua linguagem às situações comunicativas que se apresentam, e as competências linguística, comunicativa e interacional lhes permitem concretizar essa adequação. O ambiente escolar, neste contexto, tem como propósito contribuir para o desenvolvimento e ampliação das competências dos estudantes, para que possam usar a linguagem de maneira mais eficiente nos processos comunicativos e interativos nos quais estiverem inseridos, de maneira que atendam às suas necessidades e às exigências que lhes são impostas nas práticas sociocomunicativas.

É preciso considerar vários aspectos linguísticos e sociais ao se analisar a variação linguística de qualquer grupo social. A variação presente em alguns grupos linguísticos pode ser a base de comportamentos preconceituosos, que se manifestam também nos ambientes escolares. À vista disso, considera-se primordial a abordagem deste fenômeno nas aulas de Língua Portuguesa, para que o aluno possa, ao compreender seu surgimento e problemas, reconhecer e lidar melhor com a diversidade linguística.

É primordial que o indivíduo durante sua formação linguística seja guiado para que reflita sobre a língua, com o intuito de perceber que a variação linguística é compreender que as pessoas têm múltiplas maneiras de falar, ou seja, entender que uma mesma coisa pode ser dita de diferentes formas e nenhum indivíduo deve ser hierarquizado por apresentar uma forma linguística diferente da considerada padrão.

 

O compromisso do educador é, antes, com a formação do aluno, com o desenvolvimento de suas capacidades tanto de reflexão sobre a linguagem quanto do uso crítico da língua. E na medida em que a língua e linguagem são parte indissociável de nossa forma de ser e de viver, da história individual e coletiva de todos nós, a educação linguística não pode deixar de ocupar-se do maior número possível de suas facetas, em especial aquelas mais envolvidas na vida social.

 

Se a instituição escolar desprezar a conscientização dos seus estudantes sobre a variação linguística, corre o risco de formar cidadãos que não são capazes de compreender a própria língua, assim como não estarão aptos a refletir sobre fatos linguísticos, podendo segregar e hierarquizar pessoas pelo fato delas apresentarem uma variação própria, por meio da qual será revelada sua marca identitária.

Isto posto, este estudo tem como objetivo analisar de que maneira os preconceitos linguísticos e sociais se formam e qual a sua capacidade de influenciar a comunidade escolar, assim como seus prejuízos para o bom desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem. Para atingir este propósito alguns objetivos específicos foram elencados, dentre os quais: conceituar e descrever a heterogeneidade da língua e suas variações, considerando os diferentes contextos; descrever o preconceito linguístico em escolas como forma de preconceito social; ressaltar propostas para a mitigação do problema.

A presente pesquisa visa coletar as bases teóricas fundamentais para a compreensão do fenômeno de preconceito linguístico e possibilidades de ação que mitiguem o problema. O domínio destas teorias será primordial para o desenvolvimento de projetos e ações práticas no futuro durante o trabalho pedagógico

 

 

A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA

 

A língua pode se manifestar na modalidade falada, escrita ou sinalizada, e tem como função expressar pensamentos, sentimentos, conceitos concretos e abstratos, independentemente da modalidade em que se apresenta.

 

Mas o que é a língua? Para nós, ela não se confunde com a linguagem; é somente uma parte determinada, essencial dela indubitavelmente. É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos.

 

De acordo com Antunes a língua faz parte de nós mesmos, em outras palavras, constitui a nossa identidade, a nossa história e o nosso lado social, uma vez que é através dela que interagimos. Desta maneira, a interação ocorre quando usamos a língua, com toda a sua heterogeneidade, consoante com os contextos e as situações vividas.

A mudança e a variação linguística fazem parte da essência das línguas humanas. São a consequência de um processo natural inerente a todas as línguas vivas. Os falantes, para suprirem suas necessidades comunicativas, vão aos poucos incorporando novas palavras ao acervo linguístico, algumas outras vão caindo em desuso, algumas sofrem mudanças fonéticas, outras assumem novos significados. Desta maneira novos usos surgem em tempos e grupos sociais diversos, o que acaba por contribuir para a existência de falares diferentes na língua.

É justamente o atributo de sempre variar que faz com que a língua seja heterogênea, se diversificando em todas as possibilidades de uso linguístico, fazendo com que a língua se reconstrua constantemente, se distanciando, paulatinamente, da homogeneidade linguística. Bagno afirma que

 

[...] a variação e a mudança linguísticas é que são o ‘estado natural’ das línguas, o seu jeito próprio de ser. Se a língua é falada por seres humanos que vivem em sociedades, se esses seres humanos e essas sociedades são sempre, em qualquer lugar e em qualquer época, heterogêneos, diversificados, instáveis, sujeitos a conflitos e transformações, o estranho, o paradoxal, o impensável seria justamente que as línguas permanecessem estáveis e homogêneas!

 

As interações sociais desenvolvidas, por meio das variações linguísticas, não acontecem aleatoriamente, isto é, têm um sentido, alcançando um propósito comunicativo. Desta maneira tanto fatores linguísticos como extralinguísticos são capazes de motivar essa heterogeneidade.

À vista disso Callou ressalta que “É utopia, contudo, pensar que o ensino de língua portuguesa se dará em contexto de homogeneidade e que se poderá chegar algum dia a uma globalização linguística, mesmo que em uma sociedade globalizada” . Fica, desta maneira, evidente a heterogeneidade da língua e a importância de que os estabelecimentos de ensino se atentem para a importância de se trabalhar o tema em seus currículos.

A mudança e a variação linguística são resultado de fenômenos que são próprios da língua, fazem parte da sua estrutura interna e a fatores que são externos a ela, são os fatores de ordem social, extralinguísticos. Os sociolinguistas selecionaram um conjunto de fatores que podem amparar o pesquisador na identificação dos fenômenos que ocasionam a variação da língua. São eles: origem geográfica, status socioeconômico, grau de escolarização, sexo, idade, mercado de trabalho e redes sociais.

 

  1. Origem geográfica: as pessoas falam de forma diferente de acordo com o espaço geográfico em que habitam. Esta diferença pode ser notada na fala de pessoas que moram em países distintos ou em um mesmo país, quando levamos em consideração as regiões, os estados, as áreas geográficas de um mesmo estado, se são moradoras da zona urbana ou rural.

  2. Status socioeconômico: a classe econômica do falante é um fator que contribui para a variação da língua e que reflete a desigualdade da distribuição de bens culturais, o que, consequentemente, se manifesta no uso linguístico. Este fenômeno é perceptível quando se observa que pessoas de classe econômica muito baixa não falam da mesma forma que pessoas de classe média ou alta.

  3. Grau de escolarização: é na escola que as pessoas terão contato com a modalidade escrita da língua, com a variedade culta, terão acesso à cultura letrada e exercitarão a prática da leitura. Todas essas vivências contribuirão para a forma como os falantes utilizarão a língua. Sendo assim, quanto maior for o contato deles com a escola, melhores serão suas condições de se manifestarem linguisticamente.

  4. Sexo: o gênero ao qual pertencem os sujeitos exerce influência nas formas como estes usam os recursos linguísticos que a língua lhes propicia. Verificamos que alguns recursos expressivos como diminutivos (fofinho), alongamento das vogais (maaaaravilhoso), marcadores conversacionais (né?, tá bom?), são mais comuns na fala de mulheres, enquanto gírias e palavrões são mais comuns nas falas dos homens.

  5. Idade: crianças adolescentes, adultos, idosos fazem usos diferentes da língua. Há expressões que são mais propícias de acontecerem na fala de indivíduos que pertencem a uma mesma faixa etária como as gírias, por exemplo, que ocorrem mais frequentemente na fala de adolescentes, os adultos tendem a ser mais conservadores e evitam certos usos linguísticos, por entenderem que não combinam com suas faixas etárias, como as gírias por exemplo. Os idosos conservam em suas falas expressões e léxicos que já não são mais utilizados na língua vernácula.

  6. Mercado de trabalho: a profissão exercida pela pessoa influi no seu repertório linguístico. Desse modo, advogados, professores, médicos, policiais, jardineiros, encanadores, carroceiros, entre outros profissionais, usam a língua distintamente.

  7. Redes sociais: as redes sociais, formadas pelas pessoas com as quais convivemos e interagimos, são também um fator que influencia nosso comportamento linguístico, isso porque tendemos a adotar comportamentos semelhantes aos das pessoas com as quais convivemos.

 

 

A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E O CONTEXTO EDUCACIONAL

 

No momento em que chega à escola, por ser falante da língua portuguesa, o indivíduo já domina sua língua materna, e leva consigo um conhecimento implícito sobre sua língua, sua utilização e suas funções que adquiriu no seu meio social. Essa pessoa já é capaz de elaborar sentenças bem formadas com base nas regras do sistema linguístico, internalizadas nas sociabilidades cotidianas de interação com diversos grupos sociais a que possa pertencer. Bortoni-Ricardo e Dettoni afirmam que “essas sentenças podem seguir as regras da chamada língua-padrão ou as regras das variedades rurais ou urbanas. Em um ou outro caso, serão bem formadas” . Dessa forma, cabe à escola valorizar esses conhecimentos, respeitar as suas expressões e promover os seus desenvolvimento e ampliação.

A escola é encarada como um ambiente inexplorado para esses falantes, que já carregam em si um repertório verbal e, a partir deste momento, estarão frente a uma variedade da língua que boa parte deles não conhece: a norma padrão ou variedade culta da língua.

 

Nesta perspectiva a escola deve visar o aumento do repertório linguístico das crianças para lhes dar a possibilidade de utilizar as variantes apropriadas às situações de comunicação mais diversas e assegurar o mais eficazmente possível as funções a que a língua serve. Este desenvolvimento não exige a supressão das variantes existentes possuídas pela criança. A possibilidade de coexistência dos usos é, de fato, claramente demonstrada pelas investigações que têm revelado a existência de variantes intercambiáveis nos indivíduos, inclusive em crianças muito pequenas.

 

O ensino da língua deve se abrir para a realidade heterogênea da língua, aceitar a diversidade e reconhecer o seu valor. Sua postura deve ser de que não há erros no uso da língua, mas modos distintos de utilizá-la.

Este entendimento é fruto, primordialmente, dos trabalhos da Sociolinguística. Como uma ciência social, a sociolinguística colaborou consideravelmente para o âmbito educacional, dado que desde os anos 1970 a educação se tornou seu tema central. Contribuem para essa área do conhecimento fundamentos tanto da antropologia linguística quanto da dialetologia, ambas correntes amparadas na ação democratizadora da escola, segundo Bortoni-Ricardo:

 

No início da segunda metade do século XX, a evolução do conceito de relativismo cultural, tanto no seio da antropologia quanto da linguística estruturalista, permitiu a emergência da sociolinguística. Essa nova disciplina apoiava-se em três premissas básicas: o relativismo cultural; a heterogeneidade linguística inerente e a relação dialética entre a forma e a função linguísticas.

 

Assim, a primeira premissa recusava a perspectiva de que línguas e culturas pudessem ser classificadas como subdesenvolvidas, promovendo, desta maneira, a igualdade social e a equivalência funcional entre as línguas. Ao passo que a premissa da heterogeneidade linguística primava pelo rompimento com os ideais saussarianos baseados na homogeneidade linguística, atribuindo o valor necessário à variação linguística e seu espaço na língua. A terceira premissa, por seu turno, também rompeu com a tradição linguística, ao passo que centrava seus estudos na função e no uso da língua, deixando sua estrutura em segundo plano.

Desta forma, a contribuição dos estudos da sociolinguística é valorosa para o processo de ensino aprendizagem. Bortoni-Ricardo destaca que, entretanto, essa contribuição precisa ser revista, sob a óptica de determinados princípios voltados, essencialmente, para o ensino de língua materna. É nesta conjuntura que é criado o conceito de “uma pedagogia culturalmente sensível” proposto por Frederick Erickson (apud BORTONI-RICARDO, 2005). Esta concepção parte do princípio de que a pedagogia deve ter como premissa a aprendizagem de padrões de participação social, assim como, modos de falar e rotinas existentes na cultura dos estudantes. O propósito deste ajustamento é facilitar a transmissão do conhecimento nos processos interacionais, uma vez que a cognição dos discentes se associa aos processos sociais que lhes são familiares. O autor reforça que:

 

[...] O que é preciso, de fato, é contribuir para o desenvolvimento de uma pedagogia sensível às diferenças sociolinguísticas e culturais dos alunos e isto requer uma mudança de postura da escola – de professores e alunos – e da sociedade em geral. Para tal mudança de postura, todavia, a descrição das regras variáveis é uma etapa preliminar e importante.

 

Assim sendo, a mudança de paradigma demanda que sejam desenvolvidas ações provenientes da sociolinguística educacional. Ações estas que são embasadas em seis princípios. O primeiro deles considera que a influência do ambiente escolar no processo de aquisição da língua deve ser analisada nos estilos formais e monitorada, dado que a escola não é capaz de atuar no repertório linguístico do falante, mas sim, na incorporação do estilo formal ao modo de falar dos discentes. Por sua vez, o segundo princípio se respalda na ideia de que as regras variáveis que não são vistas de maneira negativa pela sociedade acabam por não ser objetos de correção pela escola.

O terceiro princípio diz respeito à inclusão da variação sociolinguística na matriz social, possibilitando estratégias que facilitam o ajuste do aluno à cultura escolar e, por consequência, à aprendizagem dos estilos monitorados da língua. Por seu turno, o quarto princípio ressalta que os estilos formais da língua são reservados aos momentos de letramento em sala de aula, influenciado pela dicotomia entre letramento e oralidade, ao invés de promover a oposição entre português culto e português ruim. Desse modo é possível fazer a diferenciação entre a língua utilizada com pessoas mais próximas e a língua empregada na leitura, na escrita e até na fala, quando se fala do modo como se escreve.

O quinto princípio propõe que a descrição da variação é resultado de uma análise minuciosa do significado dela no processo interacional. Finalmente, o sexto princípio preza pela conscientização crítica de professores e alunos em relação à variação e à desigualdade social proporcionada por ela.

Em síntese, o propósito da sociolinguística educacional é, primordialmente, o respeito às características do educando, em especial, no tocante às suas particularidades linguísticas e culturais, de maneira que possibilite o seu ingresso na cultura escolar, à medida que a escola reconhece e valoriza as competências comunicativas do alunado, amplificando-as no decorrer da sua formação escolar.

 

 

LÍNGUA E PODER

 

É por meio da linguagem que os indivíduos estabelecem interação, elaboram discursos, se colocam como sujeitos sociais em suas relações intersubjetivas em uma multiplicidade de esferas da atividade humana. A língua, por seu turno, compreende a forma de linguagem mais comumente empregada pelo ser humano na tarefa essencial da comunicação, posicionando-o como ator nos processos cotidianos de interlocução, carregados de intencionalidade. Para além da função intelectiva, a língua carrega a sua dimensão afetiva, através da qual se exprimem sentimentos e emoções.

Bourdieu ressalta alguns outros aspectos. Para o autor “a linguagem é uma práxis: ela é feita para ser falada, isto é, utilizada nas estratégias que recebem as funções práticas possíveis e não simplesmente as funções de comunicação” .Fica evidente, então, que a função da língua ultrapassa as esferas comunicacionais, ligando-se aos aspectos sociais, econômicos e culturais, e refletindo, consequentemente, as relações de dominação.

 

Em outros termos, os discursos não são apenas (a não ser excepcionalmente) signos destinados a serem compreendidos, decifrados; são também signos de riqueza a serem avaliados, apreciados, e signos de autoridade a serem acreditados e obedecidos. A língua raramente funciona, na existência ordinária, como puro instrumento de comunicação, a não ser em usos literários (sobretudo os poéticos) da linguagem. [grifo do autor]

 

Em outras palavras, a língua conduz os desejos, é responsável pela mediação das relações humanas, deixando transparecer ideologias e valores construídos historicamente. É através dela que são feitos os juízos de valor, definidos estereótipos, tacham-se rótulos, praticam-se atos que influenciam direta e indiretamente a alteridade.

O mercado linguístico está submetido ao domínio da língua oficial, compulsória em ocasiões e espaços oficiais. Para atingir este fim, a língua torna-se o produto de um disciplinamento legal, que se inicia pela padronização da ortografia. Fenômeno encontrado no Brasil, inclusive, dado que temos dois dispositivos legais que regulamentam nossa ortografia: o Decreto lei 5.765/71 e o Decreto 6.583/08.

Deste modo, quanto mais oficial for a situação, maior se torna a necessidade da norma prestigiada. Por consequência, em posições socialmente mais elevadas aumenta o nível de vigilância e autocensura sobre o uso da língua, assim como as demais normas de etiqueta social – modo de se vestir, de comer, de se comportar. Caso se recuse a se exprimir dentro dos moldes da etiqueta linguística, por ser produto depreciado no mercado ou espaço social, é feita uma imagem negativa deste indivíduo, levando-o a sofrer uma série de preconceitos, críticas ou mesmo achincalhamentos.

Neste cenário, a língua padrão equivale a uma modelagem dominada pela classe dos que, em razão de sua posição socioeconômica privilegiada, tiveram acesso a uma educação formal de difícil alcance para as classes socialmente mais vulneráveis. Desta maneira, a classe dominante, por ter à sua disposição condições materiais bastante favoráveis, elegeu uma norma por ela convencionada, que a diferencia da massa dos usuários da “língua proletária”. A língua, então, deixa de funcionar como um mero meio de comunicação para converter-se em um patrimônio simbólico no qual as relações de exclusão são ditadas pelos detentores de poder.

Ainda, de acordo com Bourdieu, este intrincado contexto de “plutocracia linguística” – no qual relações sociais, econômicas e do padrão dominante de valores se correlacionam na formação do ideal de uma sociedade – promove uma ascensão ideológica que endossa a manutenção da hegemonia da parcela dominante, até mesmo do seu capital linguístico. Neste cenário é função da escola, cumprindo seu papel de aparelho ideológico do Estado, elaborar um trabalho de educação linguística sob um paradigma crítico e emancipador, livre de preconceito e intolerância às diferenças linguísticas.

 

 

A NOÇÃO DE ERRO

 

A ideia de “erro” linguístico é altamente influenciada pelos fenômenos sociais e culturais que preconizam que a língua é repleta de erros . Contudo esta visão é carregada de equívocos, dado que a língua possui inúmeras variações, organizadas sintaticamente, possibilitando a interação social.

 

[...] não existe erro na língua. Se a língua é entendida como um sistema de sons e significados que se organizam sintaticamente para permitir a interação humana, toda e qualquer manifestação linguística cumpre essa função plenamente.

 

Todas as designações de “acerto” ou “erro” são produto de sociabilidade humana, em outras palavras, resultado de visões de mundo, juízos de valor, crenças culturais e ideologias determinadas.

O surgimento do conceito de erro linguístico, na sociedade ocidental, aponta para a língua grega na cidade de Alexandria. Durante vasto período esta região foi um importante centro cultural e ali o erudito era enaltecido, transformando a cidade, inclusive, na sede da Filosofia de então . A língua grega, deste modo, converteu-se no idioma tradicional do grande império grego. Ao alcançar esta posição surgiu a necessidade de padronização, ignorando as diferenças regionais, transformando-a num instrumento unificado e homogêneo, fundamentado num padrão de correção. Esta façanha é atribuída aos filólogos que trabalhavam na biblioteca de Alexandria, que eram considerados sábios.

Neste sentido, especificamente no século III a.C., foi escrita a Gramática Tradicional, um conjunto de normas para a língua e a linguagem, juntando intuições filosóficas e preconceitos sociais. Ecos dessa perspectiva podem ser percebidos até a atualidade em alguns princípios gramaticais: supervalorização da língua escrita em detrimento da língua falada; desprezo com as variedades linguísticas não urbanas e não letradas; criação de um modelo idealizado de língua, baseada na literatura consagrada, que não se aproxima da fala real contemporânea.

 

Os preceitos e preconceitos da Gramática Tradicional só começaram a ser questionados a partir do século XIX, com o surgimento das primeiras investigações linguísticas de caráter propriamente científico. Embora contestada pela ciência moderna, aquela visão arcaica e preconceituosa de língua e de linguagem penetrou no senso comum do ocidental e ali permanece firme e forte até hoje.

 

Então, de acordo com Bagno , esta perspectiva traz a concepção de que o “erro” linguístico decorre de todo uso da língua que fuja do modelo idealizado, definido pela linguagem literária consagrada; qualquer sintaxe, qualquer vocabulário, e toda pronúncia que indiquem a origem socioeconômica desprestigiada dos falantes; e ainda todo uso linguístico que não faça parte das classes sociais letradas.

Gomes trata do preconceito linguístico da seguinte maneira:

 

Esse preconceito é fruto de uma história de prescrição da gramática normativa, que nos acostumou a achar que toda forma diferente das regras gramaticais contidas nos livros que estudamos são “erradas”. É fruto de uma tradição de tratamento da língua como sistema rígido de leis a serem cumpridas, e que aquele que não as cumpre é “julgado e condenado” por isso.

 

No caso brasileiro, pode ser considerado “erro de português” o desvio da ortografia oficial. Também são consideradas erradas inadequações gramaticais referentes à regência e à concordância nominal e verbal, apesar das mesmas constituírem formas de variação linguística. Importante salientar que a ortografia oficial, como dito anteriormente, também é produto de relações sociais, pois advém de um decreto elaborado politicamente, negociado a partir de ordens geopolíticas, econômicas e ideológicas.

Contrasta com esse paradigma, anteriormente exposto, a perspectiva de que o indivíduo, ao falar sua língua materna, consegue interagir e estabelecer comunicação sem cometer erros. “Todo falante nativo de uma língua é um falante plenamente competente desta língua, capaz de discernir a gramaticalidade ou agramaticalidade de um enunciado.” [grifo do autor]

Esta agramaticalidade raramente é feita por falantes nativos de uma língua, dado que desrespeita as regras básicas de funcionamento da mesma. Apenas nos casos em que ocorrem enunciados agramaticais é que podem ser detectados “erros de português”.

A confusão neste ponto se torna constante sobre a determinação do que seria o “erro de português”. Enquanto alguns o compreendem como desvios da ortografia oficial, a perspectiva moderna o classifica como um erro agramatical.

Assim sendo, quando se trata da língua escrita, os “erros de português” ocorrem porque os falantes comumente tentam escrever de acordo como modo como falam. Por isso, segundo Bagno , seria plausível substituir o termo “erro” pela expressão “tentativa de acerto”, por ser a língua escrita uma análise da língua falada. Esta é a razão de grande número dos erros de ortografia, dado que a escrita provém da fala e do perfil sociolinguístico dos falantes.

A tentativa de acerto acontece pois os falantes nativos adquirem, no decurso de suas vidas, conhecimentos implícitos adequados sobre a língua materna, mesmo se não estudarem gramática na escola, já que essa absorção ocorre de maneira natural e espontânea, por meio das interações sociais.

Vale salientar, contudo, que não se propõe que, com a eliminação da noção inadequada de erro, vale tudo na língua, pois a sua utilização depende do contexto no qual será utilizada. “[...] o uso da língua dependerá de quem diz o quê, a quem, como, quando, onde, por que e visando que efeito” .

 

 

VARIAÇÕES LINGUÍSTICAS E O CONTEXTO ESCOLAR

 

Diante do exposto, o professor na prática diária sabe que a efetivação de uma educação de valorização e respeito às variedades linguísticas não acontece sem atritos. De um lado a sociedade o pressiona para que ensine somente da maneira tradicional pautada na gramática normativa e baseada na aplicação de regras. Por sua vez, as próprias legislações educacionais (Parâmetros Curriculares Nacionais e Lei de Diretrizes e Bases da Educação) já apontam para a necessidade de mudança no trabalho com a Língua Portuguesa, recomendando caminhos por meio dos quais as instituições de ensino devem traçar as suas ações pedagógicas. Nessa orientação está incorporado o trabalho com os diferentes falares. Fica evidente que todo ensino deve estar baseado na análise e reflexão, para, partindo daí, o profissional da educação saber o que usar, como usar, e em quais circunstâncias, para que haja o pleno entendimento do funcionamento da língua.

O trabalho no chão da escola encontra algumas barreiras, quando se trata do trabalho sobre variação linguística, justamente reflexo do preconceito social sobre o tema, como exemplifica Cagliari:

 

[...] falar usando o r caipira não mostra nada de bom ou de ruim do ponto de vista da estrutura fonológica da língua. Porém, se alguém falar desse modo no Rio de Janeiro, provavelmente será objeto de zombaria ou terá prejuízos sociais, por exemplo, não sendo aceito para um emprego que o obrigue a lidar com o público carioca.

 

Apoiados nos propósitos apresentados pela sociolinguística é possível que os professores façam uma análise dos laços que unem as variedades linguísticas ao ensino da língua materna nas escolas, e a tarefa da instituição escolar no aprimoramento do aluno com relação à ampliação do seu potencial enquanto ser falante. Neste sentido, Bortoni-Ricardo afirma que:

 

A escola não pode ignorar as diferenças sociolinguísticas. Os professores e, por meio deles, os alunos têm que estar bem conscientes de que existem duas ou mais maneiras de dizer a mesma coisa. E mais, que essas formas alternativas servem a propósitos comunicativos distintos e são recebidos de maneira diferenciada pela sociedade. Algumas conferem prestígio ao falante, aumentando-lhe a credibilidade e o poder de persuasão; outras contribuem para formar uma imagem negativa, diminuindo-lhe as oportunidades.

 

Como saída viável para este dilema está a possibilidade do professor de língua portuguesa se pautar em um trabalho voltado para a reeducação sociolinguística, apresentando aos estudantes a multiplicidade da dinâmica social, assim como a importância da linguagem para as relações pessoais. O emprego do termo reeducação, neste contexto, se dá porque a educação linguística começa no início da vida dos falantes.

 

[...] a educação linguística primária, primeira, primordial se dá logo no início da vida de qualquer pessoa, quando ela entra num mundo rodeado de outras pessoas que não param de falar ao seu redor. Quando (ou se) essa pessoa vai para a escola, tudo o que ela aprendeu espontaneamente até então em seu convívio familiar, comunitário, social vai se transformar em saber formalizado, sistematizado, delimitado em áreas específicas de conhecimento, rotulado por meio de conceitos, explicado com a ajuda de teorias.

 

Desta maneira, desponta a necessidade da reeducação sociolinguística como uma saída para reorganizar os conhecimentos linguísticos, sem baseá-los no costume da “correção” e nem promover a cultura de substituir um modo de falar por outro. Assim sendo, a reeducação sociolinguística tem o dever de priorizar o que a pessoa já sabe, referente à língua, que é justamente: falar bem a língua materna, de maneira espontânea e eficiente, sem aprisionar a perspectiva pedagógica nos ensinamentos voltados unicamente para as variedades cultas. Assim, os educandos são capazes de ampliar o letramento, como enfatiza Faraco:

 

Desse modo, o acesso às variedades cultas da língua não se dá por uma pedagogia concentrada no domínio de formas linguísticas, mas como subproduto de uma pedagogia articulada para garantir aos alunos a ampliação de seu letramento.

 

Em suma, é incumbência do professor de língua materna fazer com que os estudantes compreendam que eles sabem português e que a instituição educacional trabalhará para que eles possam aprimorar esse saber linguístico, adquirindo intimidade com as variedades linguísticas, associando-as às práticas socioculturais. Ademais, é importante propiciar aos alunos o conhecimento sobre as abundantes formas de falar e de escrever, amplificando o repertório comunicativo desses estudantes. Da mesma maneira, não é menos importante a conscientização do alunado sobre a desconstrução do preconceito linguístico, por meio de argumentos bem fundamentados, atentando-os para os prejuízos das práticas de discriminação, a partir da linguagem. E, por fim, promover o reconhecimento da diversidade linguística como uma riqueza inestimável da nossa cultura e da nossa sociedade.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Se debruçar sobre o tema da variação linguística demanda uma complexidade de saberes. Contudo, negligenciar este tema é negar aos estudantes a oportunidade de refletir sobre o uso da língua. As implicações desse descuido são muito mais sérias do que simplesmente a ignorância de um tema teórico, significam o descuido com as relações sociais negativas provenientes de preconceitos que se expressam, também, pela fala. Assim, a sociolinguística tem o papel fundamental de ser uma âncora de embasamento das ações didáticas dos profissionais da educação, por meio das quais se possa considerar toda a riqueza que a Língua Portuguesa possui.

O trabalho com a análise e a reflexão linguística na educação básica é bastante desafiador, sobretudo no que se refere ao estudo da gramática normativa e sua relação com as variedades sociolinguísticas, haja vista o prestígio social que a gramática normativa parece ainda possuir. É sabido que cabe à escola o trabalho com que os Parâmetros Curriculares Nacionais chamam de “norma urbana de prestígio”, espécie de variedade linguística usada pelas pessoas mais escolarizadas nos centros urbanos. Trata-se de uma forma mais monitorada de uso da língua, que se pauta em alguns dos ditames da gramática normativa. O apego exacerbado a formas mais monitoradas pode gerar obsessão gramaticalista que segrega usos igualmente legítimos, porém diferentes, da língua materna. É assim que surge a noção distorcida de erro, ato que fomenta o preconceito e a intolerância na língua.

Quando tomamos ciência de um tema passamos ter a oportunidade de refletir sobre nossas posições, e, por conseguinte, modificar nossas ações. A escola tem em si a responsabilidade de formar no cidadão uma atitude de respeito às diferenças. Contudo, isso só é possível através de uma reflexão que seja capaz de expandir a consciência das diferenças, neste caso no estudo das diferenças linguísticas, e consequentemente a um maior respeito e valorização das variações presentes na sociedade.

O modo de falar de um indivíduo é capaz de ditar quais espaços e oportunidades ele poderá ter acesso, como uma forma de julgamento cotidiano, onde as pessoas são classificadas pela sua maneira de falar. Dar visibilidade a este tema nas escolas, desde cedo, é um meio de preparar os estudantes para compreender tais diferenças. Longe de priorizar uma determinada forma de falar, combater o preconceito linguístico na escola é a democratização do ensino no que se refere à variação da língua. Ao considerar a variação da língua presente na sociedade, o ensino da língua se contextualiza, considera o meio social do aluno e dá relevância à sua identidade.

Desenvolver um ensino de língua que vise à reflexão e à apropriação da norma culta sem desprezar a legitimidade das variedades não cultas é papel primordial do professor alfabetizador. Mais do que isso: é necessário que a aula de português estimule o uso das variedades da língua de acordo com diversos contextos sociocomunicativos, sem os quais a língua seria inoperante.

Não é possível respeitar o ser humano na sua plenitude se não se respeita sua maneira de explorar a língua, que não é resultado de arbítrio individual e aleatório, mas de uma combinação de circunstâncias sociais que alcançam o indivíduo.

 

 

REFERÊNCIAS

 

ANTUNES, I. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. 4. ed. São Paulo: Parábola, 2007.

 

BAGNO, M. Língua materna: letramento, variação e ensino. São Paulo: Parábola, 2002.

 

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