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DIÁLOGOS SOBRE CULTURA, TRABALHO E EDUCAÇÃO: ELOS DAS RELAÇÕES SOCIAIS

Romero Ribeiro Barbosa1

Rozângela Aparecida de Oliveira2

 

Introdução

 

O tema que se desenvolve neste estudo surgiu de uma proposta de análise acerca da tríade de relações sociais conectadas entre cultura, trabalho e educação. Dentro desta perspectiva organizamos as leituras da seguinte forma: primeiramente far-se-á uma sucinta abordagem pertinente ao conceito de cultura e suas faces polissêmicas. Assim, a polissemia destacada primeiramente trata-se do modo de como analisamos as tradições via processos de comportamentos apreendidos e ensinados de geração em geração.

Noutro momento será abordado o conceito de cultura, tendo como exemplos alguns modelos de sociedades africanas e asiáticas o comportamento cognitivo (também uma das faces culturais), aquilo que, aos nossos olhos ocidentalizados consideramos como barbárie. Ainda dentro do contexto das discussões acerca de cultura finalizaremos nossas análises com o enfoque na categoria de cultura de massa, abordando os processos históricos da produção e dos meios de divulgação que motivam as mais variadas formas de consumo a partir da Primeira Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra a partir dos de 1760.

A segunda parte se ocupa em considerar alguns postulados históricos e sociais da categoria trabalho e sua vinculação cada vez mais incisiva com os processos educacionais. Vimos que com os avanços tecnológicos nas formas de produção, da Primeira Revolução Industrial aos dias atuais tendem, de modo bastante explícito, a exigir constantemente uma aparelhamento profissional na tentativa de acompanhar as mudanças que o mundo do trabalho propicia frente às novas tecnologias. Daí o papel importante da tríade cultura, trabalho e educação como formas conectadas das relações sociais.

 

1 - Cultura: um conceito polissêmico

 

Discorrer acerca de cultura num mundo moderno enviesado pelas ações globalitárias não é tarefa fácil. Ainda assim, concordamos com Hall (1997) quando o mesmo afirma parecer improvável que a globalização simplesmente vá destruir as identidades nacionais.

As sociedades, além da organização do trabalho, da elaboração de instrumentos de produção, do modo que cultivam a terra, a definição dos códigos linguísticos, a operação lúdica, os jogos, o contato com a natureza e a criação de novos padrões societários, envolvem a cultura como categoria da identidade humana. Sendo assim, o homem, sem a cultura, se tornaria o mais desprotegido dos animais.

Sobre esse assunto, Almeida (2008) entende que a cultura é uma rede tecida pelas sociedades, carregada de significados múltiplos que só podem ser decifrados quando inseridos em seu próprio devir histórico e social. Além disso, retornamos a Hall (1997, p. 1) para compreender que os seres humanos são seres interpretativos, instituídos de sentido.

A ação social é significativa tanto para aqueles que a praticam quanto para os que observam: não em si mesma, mas em razão dos muitos e variados sistemas de significado e sentidos que os seres humanos utilizam para definir o que significam as coisas e para codificar, organizar e regular sua conduta uns em relação aos outros.

A partir da Primeira Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra, nos anos de 1760 e mais recentemente nos limiares do século XX, vem ocorrendo uma “revolução cultural” no sentido substantivo, empírico e material da palavra.

As atividades fabris, o consumo oriundo das atividades produtivas, a cultura popular, a lida com a terra, dentre outros fatores, contribuíram para um diagnóstico das ações humanas na terra e suas afirmações diante da importância da cultura na estruturação e na organização da sociedade (BARBOSA, 2008 b).

Todavia, urge uma inquietação acerca da palavra cultura: qual o conceito de cultura? De qual cultura se pretende discorrer?

Primeiramente é necessário lembrar de que a palavra cultura tem um conceito polissêmico. Pode ser tudo aquilo que o homem através de sua racionalidade consegue executar. Dessa maneira todos os povos e sociedades possuem sua cultura por mais tradicional e arcaica que seja. A lida diária com a terra tirando dela a sobrevivência propicia aos homens uns conhecimentos adquiridos através dos tempos e repassados também de geração em geração. O uso de ferramentas tais como enxada, tratores, machados, foices dentre outros, enquanto instrumentos que possibilitam lapidar a terra são formas de manifestações culturais apreendidos por determinado grupo social (BARBOSA, 2008 a).

Grosso modo, cultura pode ser tudo aquilo que não é natureza, ou seja, tudo o que é produzido pelo ser humano. Por exemplo: a terra é natureza e o plantio é cultura.

 Nesse sentido, a cultura pode ser o comportamento apreendido e ensinado, como no caso das tradições. Por exemplo: a cultura numa visão indígena dos Kuikuros, localizada no Estado do Mato Grosso, região Centro-Oeste brasileiro, onde cada filho que nasce na tribo, ocorre o plantio de uma muda de pequi (fruto típico de regiões de cerrado) numa tentativa de repassar os ensinamentos às gerações futuras. Com isso, o fruto em questão não desaparecerá do contexto cultural daquele povo visto como uma maneira simbólica de repassar os valores culturais de geração em geração.

Outro exemplo: os Kamaiurá, ainda no estado do Mato Grosso, na região do rio Xingu, onde o ritual de passagem da condição de menina para a fase “mulher” requer um “sacrifício”. Enquanto herança familiar, a mulher (menina) permanece um ano em regime de reclusão. Para os Kamaiurá, nesse tempo, as meninas entram em comunicação com mundo através da concentração, respaldando os valores da tribo e, assim, ela se transforma em “mulher”.

Um outro exemplo de ordem cultural (e não de ordem medicinal) vem de alguns países africanos e asiáticos por meio do processo de mutilação genital feminina nas filhas pré-adolescentes, vulgarmente conhecida por circuncisão feminina. Essa prática consiste na amputação do clitóris da mulher de modo a que a mesma não possa sentir prazer durante o ato sexual.

Há também outra forma de mutilação genital através da chamada infibulação, que consiste na costura dos lábios vaginais ou do clitóris. Mesmo que a circuncisão feminina elimina o prazer sexual da mulher e a sua prática acarreta sérios riscos para a saúde da mulher devido às condições precárias para sua execução e que tudo isso causa bastante estranhamento em muitos de nós, ocidentais, é uma maneira de manifestação cultural daqueles povos. Portanto, para eles, aqueles atos milenares significam a reprodução de valores espirituais e materiais, resultado de um processo bastante antigo praticado por um grupo social, uma nação, uma comunidade enquanto atividades oriundas de padrões de comportamento repassados de geração em geração num contexto espacial e temporal.

Outra categoria de cultura muito comum nos dias atuais é a cultura de massa. Retornamos no processo histórico da Revolução Industrial para especializar o momento de seu surgimento. A produção de bens de consumo gerados pela transformação de produtos naturais em artigos ou objetos industrializados promovendo uma verdadeira avalanche nas formas de consumo de massa.

Conforme Haal (1997), através da imagem veiculada pela mídia; o bombardeio dos aspectos rotineiros de nosso cotidiano pro meio de mensagens, ordens, convites e seduções; a extensão das capacidades humanas, especialmente nas regiões desenvolvidas ou mais ricas do mundo, e as coisas práticas como comprar, olhar, gastar, poupar, escolher, socializar realizadas à distância de forma virtual, fazendo uso de novas tecnologias culturais do estilo de vida.

Essa centralidade da cultura indica como a mesma penetra em cada recanto da vida social da Primeira Revolução Industrial aos dias atuais. A ascensão de novos padrões, domínios associados a novas tecnologias de produção, divulgação e consumo tendem a reforçar a produção em massa de “indústrias culturais” que transformaram as esferas tradicionais da economia, da indústria, da sociedade e da cultura em si.

A cultura de massa é visa como uma força de mudança histórica global via transformação do cotidiano das identidades pessoais e sociais. Estamos, por certo, numa nova virada cultural representada pelos modelos de consumo em massa. Conforme Hall (1997, p. 10), “a virada cultural está intimamente ligada a esta nova atitude em relação à linguagem, pois a cultura não é nada mais do que a soma de diferentes sistemas de classificação e diferentes formações discursivas aos quais a língua recorre a fim de dar significado às coisas”. Vivemos sob a regência reguladora dos processos culturais, sobretudo no caso em questão das culturas de massa. Assim, conforme nos lembra Hall (1997, p. 21), “sua crescente centralidade nos processos globais de formação e mudança, sua penetração na vida cotidiana e seu papel constitutivo e localizado na formação das identidades e subjetividades”. Finaliza aquele autor.

 

2 - Trabalho e educação: relações sociais desconexas

 

Inicialmente urge um questionamento acerca dessas duas categorias sociais: qual é a relação entre trabalho e educação?

Outra pergunta poderá ser elaborada a partir da busca da resposta a primeira: qual é a relação entre cultura, trabalho e educação?

No tópico anterior, fizemos uma ligeira abordagem sobre a categoria cultura de massa a partir da Primeira Revolução Industrial que, juntamente com o processo de transformação da natureza em produtos acabados é que as variadas formas de consumo e cultura de massa motivou a produção em grande escala. Nesse sentido, trabalho e educação trilharam percursos históricos semelhantes, pois, uma vez que há os avanços tecnológicos no modo produzir, cada vez mais exige a qualificação profissional. Se nos primeiros momentos da Revolução Industrial na Inglaterra a força de trabalho estava intimamente condicionada às questões técnicas das máquinas à vapor, o homem era um mero observador e ajustador daquelas primeiras ferramentas de produzir.

Com o passar dos tempos a indústria se aprimora fazendo uso de novas tecnologias cada vez modernas e isso também estava atrelada ao processo educacional, pois, para investir em tecnologia necessário se faz (fazia) apostar em pesquisas de ponta, material e sobretudo novas relações de trabalho, educação e natureza.

Mais ainda acentuado nos dias de hoje: “a atividade produtiva é o fator absoluto de todo o processo de produção e reprodução da vida humana”, conforme nos orienta Antunes (2010, p. 42). Porém, seguindo ainda o entendimento deste autor, toda e qualquer atividade produtiva só se pode efetivar por meio de algo.

Entendemos que esse ‘algo’ ao qual se refere o autor está diretamente relacionado a natureza e a formas de que homem vem adquirindo para intervir na mesma. E é exatamente por conta de sua atividade produtiva, via trabalho, que o homem – visto por ele como uma parte da natureza – distancia-se de sua condição animalesca e faz da própria natureza um continuidade de seu corpo. 

Propalada pelo próprio avanço das técnicas e das tecnologias, a qual passaria a necessitar não mais de trabalhadores aptos a operar máquinas isoladas e a realizar tarefas específicas, mas capazes de inspecionar a produção realizada por estas e de coordenar a ação entre a produção de várias máquinas que, já naquela época, poderíamos denominar de ‘modernas’.

Modernas no sentido da inovação daquela modalidade produtiva e dos novos arranjos da tríade que inicialmente se fazia imperar entre trabalho, sociedade e educação.  A natureza do trabalho passa a depender da natureza humana e suas necessidades tanto no campo da objetivada como também no campo das relações subjetivas, fundamentadas num objeto de interesse maior do capital: o dinheiro.

Dito de outra maneira significa que o próprio resultado do processo de trabalho pode suscitar no ser humano que trabalhou no trabalhador uma série de novas realizações e, também novas generalizações. Assim, na observação de Antunes (2010, p. 47), “as generalizações feitas a partir das experiências do trabalho trazem em si a gênese da ciência, ou ainda a estrutura da produção científica”. Dessa forma, é exatamente o acúmulo de conhecimento dentro de um processo histórico pertinente aos avanços do trabalho que justificam a humanidade tanto nas suas singularidades imediatamente materiais quanto nas mais complexas e abstratas manifestações espirituais. Portanto, seguindo ainda as orientações de Antunes (2010, p. 58), pode conceber que o trabalho é:

 

Exatamente aquilo que garante a reprodução social diária e imediata e também aquilo que orna possível ao ser humano – ao conjunto dos seres humanos – dedicar-se a atividades que possibilitem uma existência cada vez mais plena, na medida em que é exatamente por intermédio dos acúmulos sócio-históricos das realizações e aquisições dos processos do trabalho, cerne de todo o processo formativo humano.

 

Com efeito, vemos, então que a atividade produtiva, imposta ao homem como uma necessidade natural, trata-se de uma condição fundamental de sobrevivência e do desenvolvimento dos seres humanos.

Estas são as razões pelas as quais o trabalho – em suas articulações ontológicas com a educação – ser o fundamento da relação que estabelece entre aquilo que Marx chamou de O Reino da Necessidade e o Reino da liberdade. Ou, dito de outra forma, o ponto de partida e o ponto de chegada da formulação emancipatória marxista.

 

Considerações finais

 

Nessas vias interpretativas, é possível concordar com o seguinte fato: o processo formativo, educacional, do ser humano não pode ser separado da categoria trabalho. Ambos se entrelaçam numa via de mão única do processo de desenvolvimento tanto social, político e econômico em qualquer tempo, em qualquer sociedade.

Entretanto, torna-se inconcebível, do ponto de vista histórico, que não se pode conceber trabalho sem educação.

Como bem finaliza Antunes (2010, p. 48, apud Marx, 1969), “os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.

As circunstâncias de sua escolha em qualquer espaço-temporal nos faz refletir e, ao mesmo tempo inserir outro contexto da sociedade que também se junta ao trabalho e educação: os aspectos culturais.

Com o passar do tempo, em qualquer sociedade, o vinculo entre cultura, trabalho e educação sempre foram elos definidores de manifestações tanto objetivas quanto subjetivas. E estas etapas não estão desconexas do processo histórico-social de todas as sociedades.

 

Referencial Bibliográfico

 

ALMEIDA, Maria Geralda de. Manifestações culturais: uma abordagem geográfica para a valorização e gestão patrimonial das paisagens culturais. Projeto de Pesquisa, IESA/UFG, 2008.

 

ANTUNES, Caio. Acerca da indissociabilidade entre as categorias trabalho e educação. Motrivivência. Ano XXII, nº 35, p. 41-61. Dez./2010.

 

BARBOSA, Romero Ribeiro. Saberes, sabores e sentidos: a gastronomia no contexto da geografia cultural. Livro: Geografia e cultura: a vida dos lugares e os lugares da vida / Organizadores Maria Geralda de Almeida, Eguimar Felício Chaveiro, Helaine da Costa Braga. – [S. I: s.n.], 2008 (Goiânia: E.V).

 

BARBOSA, Romero Ribeiro. Antigas tradições e novas temporalidades: as (re) existências culturais festivas nos municípios da antiga região do Mato Grosso Goiano. Projeto de Tese de Doutorado apresentado ao IESA/UFG, 2008.

 

 

1 Romero Ribeiro Barbosa é Mestre em geografia pela Universidade Federal de Goiás – UFG.

2 Rozângela Aparecida de Oliveira é Mestra em Ciências Sociais e Humanidades – TECCER – UEG.

HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Texto publicado no capítulo 5 do livro Media and cultural Regulation, organizado por Kenneth Thompson e editado na Inglaterra em 1997. Tradução e revisão de Ricardo Uebel, Maria Isabel Bujes e Marisa Vorraber Costa.