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O USO DO PRESENTE DO INDICATIVO NO DISCURSO INDIRECTO NO PORTUGUÊS DE MOÇAMBIQUE RELATIVAMENTE AO PORTUGUÊS EUROPEU

Saide Assane Saide[1]

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RESUMO

O presente artigo enquadra-se na área da linguística de variação e tem como tema - o uso do presente do indicativo no discurso indirecto no Português de Moçambique relativamente ao Português Europeu. Nele, far-se-á análise dos aspectos de variação do PM em relação ao PE mediante o uso do presente do indicativo no lugar do pretérito imperfeito no discurso indirecto. A língua é um fenómeno social, portanto, ela tem que ser analisada tendo em conta o factor social. A questão de variação é resultante dos diversos motivos, desde os motivos culturais, geográficos, políticos, étnicos. Quando pretendemos dizer ao outro aquilo que ouvimos, estamos diante daquilo que os gramáticos chamam de discurso indirecto ou seja, discurso relatado. Quando transmitimos alguma informação, que ouvimos de alguém, para alguém, não transmitimos exactamente como ouvimos, certos elementos alteram-se, desde os tempos verbais, os pronomes deícticos e outros elementos. No Português falado em Moçambique há inobservância de algumas prescrições que a norma europeia estabelece, sobretudo, quando se trata dos tempos verbais.

Palavras-chave: Presente do indicativo. Discurso indirecto. Português de Moçambique Linguística de variação.

 

Introdução

 

Em Moçambique, o Português está em contacto permanente com as Línguas do grupo Bantu que constituem línguas maternas para grande parte dos moçambicanos. Língua segunda para a maior parte da população moçambicana que dela se serve, a Língua Portuguesa vai incorporando dizeres, expressões, influências que vão construindo uma certa identidade. Portanto, do contacto que mantém com as línguas autóctones a vários níveis, a LP em Moçambique sofre, tal como qualquer língua viva, mudanças assinaláveis que a distinguem da norma europeia. A variação à norma europeia no chamado Português de Moçambique é um fenómeno natural a qualquer língua viva.

 

Variação linguística

 

A língua é um fenómeno social por excelência, um meio de acção social compreendendo uma das mais importantes formas, através da qual os indivíduos e grupos constroem identidades pessoais, negoceiam relações sociais, articulam categorias sociais, e contestam ou adquirem relações de poder.

 

Quando os indivíduos usam a língua, eles fazem-no com a intenção de se comunicarem, referirem-se ao mundo real, reclamarem, etc. Eles não consideram que, de algum modo, estejam a ‘construir a língua’ ou a contribuir expressamente para a sua continuidade ao longo do tempo ou através do espaço. Os falantes querem apenas resolver os seus assuntos com as elocuções. Contudo, a consequência não intencional da fala é precisamente a criação da língua, da sua continuidade e mudança através do tempo, STUBBS (1995) apud STROUD e GONÇALVES (1997:29).

 

O contacto do Português Europeu com outras línguas através do processo de ocupação territorial, permitiu com que houvesse variação a nível sintáctico, semântico e pragmático com o português falado em territórios colonizados. Desta maneira, Moçambique não escapou deste processo, visto que é um dos territórios que sofreu o processo de colonização portuguesa.

Moçambique é um país com um número considerável de línguas do grupo bantu, dentre elas destaca-se o Emakhuwa. Essa língua é falada em toda zona norte e uma parte da zona centro, sendo assim a língua nativa mais falada no território moçambicano. Deste modo, o emakhuwa é a língua usada neste artigo para se fazer a comparação dos aspectos de variação que influenciam o Português.

 

Presente do indicativo  

De acordo com PESTANA (2013: 489), o presente do indicativo indica:

  1. Um fato que ocorre no momento em que se fala, designado, assim, presente momentâneo. Ex.: Ouço vozes estranhas que vêm lá de fora.
  2. Um facto habitual, corriqueiro, frequente. Ex.: Aos domingos, vou à missa.
  3. Um facto atemporal, uma verdade absoluta ou tomada como tal (aparece muito em ditados, máximas, leis etc.). Ex.: Morre todos os dias uma pessoa a cada 5 segundos.
  4. Um facto que já se iniciou e dura até o presente momento da declaração. Ex.: Os cientistas estudam a cura da SIDA ainda.

 

Pretérito imperfeito

Na perspectiva de CUNHA e CINTRA (:326) “o pretérito imperfeito ensina-nos o seu valor fundamental o de designar um facto passado, mas não concluído (imperfeito = não perfeito, inacabado). Encerra, pois, uma ideia de continuidade, de duração do processo verbal; é especialmente usado nas descrições, narrações de acontecimentos passado”.

Na mesma linha de pensamento, PESTANA (2013:494) refere que o pretérito imperfeito indica:

  1. Um facto passado que então era presente, mas não concluído, incompleto, ou que apresenta certa duração. Ex.: Beto lutava pela erradicação da fome.
  2. Um facto passado em curso que indica simultaneidade a outro facto. Ex.: Enquanto eu estudava, ela me atrapalhava.
  3. Um facto habitual, iterativo, repetitivo, uma acção contínua. Ex.: Eu fazia musculação todo santo dia.
  4. Normalmente usado em narrações para marcar descrições ou ideias temporais passadas. Ex.: Era 2008, quando encontrei minha esposa. Ela estava linda! Vestia um lindo vestido florido.
  5. Quando o pretérito imperfeito é usado no lugar do presente do indicativo indica polidez, gentileza, cortesia. Ex.: Você podia (= pode) me ajudar?

Como se pode ver, não há nenhuma aproximação do presente do indicativo com o pretérito imperfeito que justifique o uso de um no lugar de outro.

 

Discurso Indirecto

Ao se recorrer o discurso indirecto, o enunciador não se propõe em reproduzir as palavras do locutor exactamente como elas foram ditas, mas somente em passar o conteúdo do pensamento, reproduzindo com suas próprias palavras, conforme refere MAINGUENEAU (2001:108) “o discurso indirecto só é discurso citado por seu sentido, constituindo uma tradução da enunciação citada. Como o discurso não reproduz um significante, mas dá um equivalente semântico integrado à enunciação citante, ele apenas implica um único locutor, o qual se encarrega do conjunto da enunciação”.  

Na mesma linha de pensamento, CHIAVENATO (2001:241) refere que no discurso indirecto “o enunciador passa a ter mais responsabilidade, ele compartilha com o sujeito falante parte da responsabilidade pelo tom que imprime ao enunciado”.

As falas relatadas no discurso indirecto são apresentadas sob a forma de uma oração subordinada substantiva objectiva directa introduzida por um verbo dicendi[2], é o sentido do verbo que mostra haver um discurso relatado e não uma simples oração subordinada substantiva objectiva directa, MAINGUENEAU (2002:150).

Segundo o Prontuário da língua portuguesa, (2005: 131) o discurso indirecto “consiste na reprodução ou citação do discurso de forma indirecta, isto é, o locutor-relator incorpora as suas próprias palavras e frases no discurso, através de diversas transformações textuais”. O discurso indirecto seria, portanto, quando o locutor apresenta de forma não fiel através de transformações, resumos aquilo que ouviu.

CUNHA e CINTRA (2004:426) referem que ao passar um tipo de relato para outro, certos elementos do enunciado se modificam, por acomodação ao novo molde sintáctico. Deste modo, os mesmos autores afirmam que o verbo enunciado no presente ao se passar para o discurso relatado passa para o pretérito imperfeito.

Mediante os conceitos acima expostos, percebe que no Português de Moçambique, o falante não transforma todos elementos na medida em que passa o discurso directo para o discurso indirecto.

Tomemos como exemplo as seguintes frases:

  1. *O António disse que te precisa. = [PE: precisava]
  2. *Ana, o Jorge disse que te ama. = [PE: amava]
  3. *Ele disse que está a vir de Nampula. = [PE: estava]
  4. *Ele perguntou se você está a fazer aquele trabalho. = [PE: estava]

Como se pode constatar nas frases acima expostas, houve a manutenção dos tempos verbais na medida em que o discurso foi relatado. A partir disso pode-se levantar a seguinte questão: por que os falantes optam pelo uso do presente do indicativo no lugar do pretérito imperfeito? Mediante essa questão, pode-se levantar as seguintes hipóteses:

  1. A transferência da mesma estrutura das línguas bantu, especialmente o emakhuwa;
  2. Evitar a má interpretação do discurso (quebra de espectativa).

Na primeira hipótese, pode-se dizer que o falante opta pelo uso do presente do indicativo pelo pretérito imperfeito por causa da transferência da mesma estrutura frásica das línguas bantu (concretamente o emakhuma) para o português, por exemplo;

  1. António oiralé onawúphela = O António disse que te precisa.
  2. Ana, Jorge oiralé onawúthuna. = Ana, o Jorge disse que te ama.
  3. Yena oiralé onkhuma = Ele disse que está a vir de Nampula
  4. Yena onúkoha kampa we onápanka ntecóle. = Ele perguntou se você está fazendo aquele trabalho.

Como se pode observar, tanto no emakhuwa assim como no português, os falantes mantêm os verbos no presente na medida em que relatam o discurso.   

Na segunda hipótese, os falantes recorrem ao presente do indicativo em vez do pretérito imperfeito para evitar com que haja má interpretação da mensagem por parte do ouvinte, vejam-se nas seguintes frases as interpretações que poderiam surgir caso se usasse o pretérito imperfeito:

  1. *O António disse que te precisa.
  2. *Ana, o Jorge disse que te ama

Na frase da alínea a), caso se o falante dissesse: O António disse que te precisava, o ouvinte poderia entender que não está sendo precisado mais pelo António naquele momento em que o falante estava a relatar. Da mesma maneira, na frase da alínea b) a Ana poderia entender que não está sendo amada mais pelo Jorge. Os ouvintes trazem essas interpretações pelo facto de considerarem que pelo facto de o verbo estar no pretérito (passado) a acção não tem mais efeito no presente, não dando importância que o pretérito imperfeito indica uma acção passada não concluída que se prolonga até o momento presente.

 

Conclusão

 

A partir daquilo que foi exposto, pode-se concluir que o uso do presente do indicativo no lugar do pretérito imperfeito no discurso indirecto no português falado em Moçambique, é devido aos dois motivos: a transferência da mesma estrutura das línguas bantu para o português e evitar a má interpretação do discurso, isto quer dizer que os falantes ao emitir um enunciado do discurso directo para o indirecto segue a mesma estrutura das línguas bantu, concretamente o emakhuwa, e para evitar que os ouvintes extraiam interpretações fora daquilo que o falante queria que o ouvinte extraísse.

 

Referencias Bibliográficas

 

CUNHA, C. e CINTRA, L. Nova Gramática do português Contemporâneo. Edições Sá da Costa. 14ª. Edição. Lisboa. 2004

CHIAVENATO, Valéria Coelho. Construções e funções no discurso jornalístico: o processo cognitivo de mesclagem de vozes. In AZEREDO, José Carlos de. Letras e Comunicação. Petrópolis. 2001


Análise de textos de comunicação
. Paulo Cortez. São Paulo. 2002MAINGUENEAU, Dominique. Elementos de linguística para o texto literário. Martins Fontes. São Paulo. 2000

PESTANA, Fernando. A Gramatica para concursos públicos. Elsevier Editora. 2013

PRONTUÁRIO da Língua Portuguesa. Porto Editora. Porto. 2005

STROUD, C. & GONÇALVES, P. Panorama do Português oral de Maputo – Volume I – Objectivos e Métodos. Maputo. 1997.

 

[1] Formando do curso de Licenciatura em ensino de Português com habilitações em ensino de Inglês na Universidade Rovuma (UNIROVUMA).

[2] Verbo dicendi, de acordo com PIMENTEL (2014:16), “é aquele que introduz a fala, como dizer, falar, responder, retorquir, gritar, sussurrar, indagar, afirmar, perguntar, etc”.