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ALFABETIZAÇÃO EM TURMAS MULTISSERIADAS: METODOLOGIA DOCENTE NA PRATICA COTIDIANA PARA LIDAR COM OS DIFERENTES NÍVEIS DE APRENDIZAGEM

 Patrícia Santos Luz[1]

 

RESUMO

Este estudo teve por objetivo geral analisar as estratégias docentes para lidar com a os diferentes níveis de aprendizagens sobre a leitura e a escrita em turma multisseriada e, especificamente, as estratégias docentes de diversificação de atividades. Participou da pesquisa uma professora da região Norte do Mato grosso e sua turma.  Foram observadas 15 jornadas de aula e realizadas entrevistas semi estruturadas, analisadas a partir da Análise de Conteúdo de Bardin. Realizou-se avaliação diagnóstica da turma, com base na Teoria da Psicogênese da Língua Escrita. A professora desenvolvia diariamente estratégias de diferenciação de Atividades, incluindo as que eram realizadas em grupos e duplas, favorecendo as interações e co-aprendizagem entre as crianças. O critério central de agrupamento dos alunos era o nível de aprendizagem em leitura e escrita. As estratégias de diferenciação tinham como pressuposto a heterogeneidade da turma e eram estruturantes da prática docente, porém, o princípio da busca dos diferentes níveis de aprendizagem encontrava - se subjacente à conformação dos agrupamentos.

Palavras-Chave: Classes Multisseriadas. Práticas de Alfabetização. Diversidade.

 

ABSTRACT

The objective of this study was to analyze the teaching strategies to deal with the different levels of learning about reading and writing in a multi-series classroom and, specifically, the teaching strategies of diversification of activities. A teacher from the Northern region of Mato Grosso and her class participated in the research. Fifteen class days were observed and semi structured interviews were carried out, analyzed from the Bardin Content Analysis. A diagnostic evaluation of the class was carried out, based on the Theory of the Psychogenesis of the Written Language. The teacher developed daily activities differentiation strategies, including those that were carried out in groups and doubles, favoring the interactions and co-learning among the children. The central criterion of student grouping was the level of learning in reading and writing. Differentiation strategies had as presupposition the heterogeneity of the class and were structuring of the teaching practice, however, the principle of the search of the different levels of learning was underlining to the conformation of the groupings.

Keywords: Multiseriate Classes. Literacy Practices. Diversity.

 

A REALIZAÇÃO DA ALFABETIZAÇÃO EM TURMAS MULTISSERIADAS: METODOLOGIAS DOCENTES PARA LIDAR COM A DIVERSIDADE DAS APRENDIZAGENS

 

A alfabetização de crianças em nosso país apresenta- se como um dos maiores desafios da educacional brasileira. O recorrente fracasso da escola pública (SOARES, 1985; KRAMER, 1986; MORAIS, 2012) em alfabetizar estudantes, especialmente os oriundos das classes populares, não foi superado. Se observarmos alguns índices referentes à escolaridade da população rural, veremos que as desigualdades educacionais são ainda mais acentuadas no campo.

Apesar da implantação crescente da política de nucleação escolar e o conseqüente fechamento das unidades educacionais nas zonas rurais, o contingente de crianças e jovens que estudam nesses contextos no país é significativo. Em sua maior parte, as escolas do campo organizam - se no sistema de multisseriação, no qual crianças de diferentes anos e níveis de ensino são agrupadas na mesma classe. Estas se constituem onde há poucos alunos para cada ano escolar e/ou nos locais em que as comunidades exigem escolas em suas proximidades.

Os diferentes estudos da área têm enfatizado as potencialidades educacionais constitutivas das escolas multisseriadas do campo; ou seja, a diferença de culturas, idades e conhecimentos infantis é enfocada não apenas como desafio, mas como possibilidade pedagógica (FERRI, 1994; PINHO, 2004; SILVA, 2007; SANTOS; SOUZA, 2013).

Apesar disso, ainda são poucos os estudos e pesquisas sobre Educação do Campo que focalizam os processos de alfabetização das crianças. No entanto, nenhum destes estudos focalizou,as diferentes formas de aprendizagem na pratica em sala de aula  principalmente no que se refere a alfabetização.

A partir da identificação desta lacuna na produção do conhecimento na área, formulamos o seguinte questionamento de pesquisa: que metodologias didáticas são realizadas por uma professora em contexto de multisseriação para lidar com a diversidade de conhecimentos das crianças?

De modo geral, procuramos analisar, como nosso objeto de estudo, as estratégias docentes para lidar com os diferentes níveis de aprendizagens infantis em turma multisseriada. Especificamente, procuramos analisar as estratégias de diversificação de atividades realizadas pela professora.

 Devido os limites deste trabalho, iremos apresentar os resultados e discutir uma dentre as três estratégias de diversificação de atividades que identificamos na prática docente.

 

DIFERENTES NIVEIS DE ALFABETIZAÇÃO NA MESMA CLASSE

 

A discussão sobre os níveis de aprendizagem, de modo geral, e seu tratamento em sala de aula ampliou-se com a implantação dos ciclos de aprendizagem em muitos municípios e estados do Brasil. Concordamos com Freitas (2002, 2007) quando problematiza que com a adoção dos ciclos, a exclusão não deixou de existir, mas foi “engolida” pela escola. Ou seja, se com o modelo seriado o aluno que estivesse fora do padrão de aprendizagem era reprova do até ser excluído literalmente da escola (evasão), com os ciclos têm ocorrido de os alunos prosseguirem formalmente os estudos, porém sem corresponder às suas aprendizagens. Esta perigosa maquiagem de inclusão, que viabilizou regularizar o fluxo de estudantes e melhorar algumas metas exigidas por organismos educacionais internacionais pode, ao contrário, inviabilizar a continuidade da exclusão, sob o discurso de “todos na escola”.

Assim, consideramos importante discutir sobre as estratégias docentes de enfrentamento da diversidade de níveis de aprendizagem desenvolvidas nas práticas de alfabetização, uma vez que, apesar deste tratamento ter sido assumido teoricamente como pressuposto didático - pedagógico das políticas de ciclo, diversos estudos indicam a dificuldade dos Professores em trazer para o cotidiano (OLIVEIRA, 2010; ANICETO, 2011; CRUZ, 2012; BRAINER, 2012; SILVEIRA, 2013; SILVA, 2014). Neste sentido, Leal (2005, p.91) afirma que uma das habilidades mais difíceis e relevantes que precisam ser desenvolvidas pelos professores é a de “identificar as necessidades especificas de cada aluno e atuar com todos ao mesmo tempo”. 

Nas turmas multisseriadas o desafio é ampliado: além de terem que lidar com a esperada diferença de ritmos e modos de aprendizagem do conhecimento pelas crianças, o professor ainda precisa enfrentar particular dificuldade de ordem motivacional, em função das distintas faixas etárias numa mesma classe e, ainda, conseguir planejar e organizar o ensino das crianças ao mesmo tempo em que é necessário garantir a progressão de conteúdos e aprendizagem das que já se alfabetizaram.

Os desafios de integrar os objetivos de trabalho de cada ano e ciclo de aprendizagem sem a fragmentação de conteúdos e metas são enormes, uma vez que o trato diferença de anos e ciclos escolares pressupõe clareza dos desiguais objetivos e, ao mesmo tempo, trabalho integrado entre eles. Além disto, exige do (a) professor (a) e das redes de ensino processos de avaliação contínua, no intuito de identificar os conhecimentos já alcançados pelas crianças e os que ainda precisam ser alcançados, avançando em sua progressão.

Nesse sentido, pensar os agrupamentos em termos de processos de aprendizagem e, ao mesmo tempo, levar em conta sua integração, é o que têm apontado alguns professores (as) e pesquisas sobre turmas multisseriadas.

Em relação às práticas de alfabetização, interpretações equivocadas sobre algumas implicações pedagógicas das teorias da psicogênese da escrita, dos estudos sobre a consciência fonológica e sobre os processos de letramento acarretaram na “desinvenção” da alfabetização (SOARES, 2003; MORAIS, 2012).

 A este respeito, algumas pesquisas recentes têm destacado o papel das práticas sistemáticas e reflexivas de ensino como condição primordial da alfabetização das crianças e requisito para o domínio autônomo da leitura e produção de textos (MORAIS, 2012).

Nessa perspectiva, partindo do pressuposto de que a aprendizagem da escrita é uma atividade complexa, em que o sujeito precisa integrar diferentes conhecimentos, além dos referentes aos seus usos, funções e características dos diferentes gêneros, Leal (2006) defende que seu ensino deve ser sistematicamente planejado.

Assim, propõe, para este planejamento da ação docente, que o professor leve em conta seus conhecimentos e princípios teórico-metodológicos sobre o objeto, os conhecimentos já desenvolvidos pelas crianças sobre o mesmo e a natureza do objeto de ensino.

No caso do sistema alfabético, a autora discute os benefícios de algumas atividades voltadas para sua apropriação, tais como atividades de familiarização com as letras, de construção de palavras estáveis, atividades com rimas e jogos fonológicos, de decomposição e composição de palavras, de comparação entre palavras (quanto ao número de sílabas, às letras utilizadas, etc.), de escrita de palavras e textos, de sistematização das correspondências grafo-fônicas, de reflexão durante a produção e leitura de textos (LEAL, 2006).

Em outro trabalho, Leal (2005) propõe que o ensino seja planejado levando-se em conta a construção de uma rotina que abarque um conjunto de atividades permanentes, atividades esporádicas, trabalho com jogos, projetos e seqüência didáticas, envolvendo ludicamente as crianças em sua realidade, ao mesmo tempo em que favoreça o planejamento e acompanhamento sistemático do ensino e das aprendizagens.

Nessa perspectiva, entendemos que a diversificação de atividades e de formas de agrupamento das crianças em turmas multisseriadas constituem estratégias relevantes no tratamento da heterogeneidade de aprendizagens, favorecendo o avanço dos conhecimentos dos alunos em leitura e escrita.

 

ESTRATEGIAS, ATUAÇÕES E OS SUJ EITOS DO ESTUDO.

 

Coerentemente com a definição de nosso objeto de estudo, fizemos a opção metodológica pela investigação qualitativa (BOGDAN e BIKLEN, 1994). Destacamos, no entanto, que aspectos quantitativos das práticas, tais como a frequência ou a recorrência de determinadas estratégias didáticas compuseram as análises, de modo a evidenciar a incidência, a regularidade ou eventualidade da pratica docentes relacionados ao nosso objeto de estudo. A análise dos dados foi realizada a partir da perspectiva de análise de conteúdo de Bardin (2002).

Os procedimentos de pesquisa adotados foram: a) observação da prática docente; b) entrevistas semi-estruturadas com a professora no início e final da pesquisa e mini entrevistas após as aulas; c) diagnoses de leitura de palavras, leitura de textos, escrita de palavras e produção de textos, no intuito de subsidiar a análise das estratégias docentes para lidar com os diferentes níveis conhecimentos presentes na classe.

Os níveis de escrita das crianças foram analisados de acordo com a teoria da psicogênese da escrita (FERREIRO e TEBEROSKY, 1985; FERREIRO, 1989).

Observamos 15 jornadas completas de aula da professora, em três blocos seqüenciados, no ano de 2016.

As aulas foram filmadas, registradas em caderno de campo e posteriormente transcritas.

Os relatórios de aula produzidos continham, além da transcrição dos diálogos, uma pré-categorização da rotina pedagógica e das atividades realizadas nos diferentes eixos de ensino de Língua Portuguesa (leitura de textos, análise linguística, produção de textos e oralidade). Em seguida, para cada eixo, as atividades realizadas pela professora foram agrupadas em subcategorias e cruzadas com o nível de apropriação da escrita das crianças que as realizaram.

 O município de Nova Bandeirantes, localizado no Norte do Mato Grosso, a cerca de 1.055 km da capital. Para selecionar o (a) professor (a) que participaria na pesquisa nos guiamos pelos critérios: ser professor(a) de classe multisseriada no campo que abarcasse os anos  iniciais do ensino fundamental (ciclo de alfabetização) e ter o tempo mínimo de 3 anos de experiência docente em turma multisseriada.  A professora participante da pesquisa possuía formação inicial em pedagogia pós graduação em psicopedagogia e 29 anos de idade.Lecionava para crianças da mesma comunidade há 10 anos;iniciou a carreira professora leiga com apenas o ensino médio incompleto estudava e ao mesmo tempo dava aula,depois que veio a se formar a professora  residi na zona rural. Leciona no turno da manhã, exclusivamente.

A turma era composta por 19 alunos, sendo 6 do primeiro ciclo (4 do 1º ano e 1 do 2º ano), 2 alunos do 4º ano e 11 da educação infantil 05 do pré II. Suas idades variavam entre 4 e 10 anos.

 

RESULTADO E DISCUSSÃO

 

No que diz respeito à diversificação do trabalho pedagógico vimos que, nas 15 jornadas de aula, a professora organizou de 2 a 6 momentos diários de atividades diversificadas nas aulas de Língua Portuguesa. No total, identificamos 43 situações de diversificação das atividades, ao longo das 15 jornadas de aula, o que resulta em uma média de 3 a 4 momentos com atividades diversificadas por dia.

Nessas situações, identificamos três estratégias docentes para lidar com a diversidade de níveis de aprendizagem das crianças: atividades diferenciadas realizadas coletivamente; atividades diferenciadas realizadas em grupo ou em duplas; atividades diferenciadas realizadas individualmente.

 Porém, para fins deste trabalho, nos detivemos na análise da segunda estratégia mencionada, a de realizar atividades diversificadas realizadas em grupo ou em duplas. Antes de adentrarmos na discussão sobre essa estratégia docente, faremos algumas considerações gerais sobre o trabalho de diversificação de atividades realizado pela professora.

 Observamos, de modo geral, que a diversificação das atividades atendia ao critério dos níveis de aprendizagem dos alunos. A professora organizava os diferentes momentos da aula com atividades distintas, bem como estruturava os agrupamentos de alunos, no caso das atividades em pequenos grupos ou em duplas, a partir dos níveis de conhecimentos que estes apresentavam em leitura.

De modo geral, a professora organizava atividades para dois grandes conjuntos de alunos, que, em alguns casos, se subdividiam em três ou quatro. O das crianças denominadas pela professora como as “maiores” correspondiam aos alunos de leitura fluente, todas elas identificadas como alfabéticas em nossa diagnose. Eram alunos do 1º, 2º e 4º ano.

Por vezes, a professora destacava atividades específicas para a dupla de alunos do 4º ano, que eram alfabéticas e cometiam poucas trocas de letras e erros ortográficos. O conjunto de alunos denominado como os “menores” , pela professora,correspondiam aos alunos não alfabéticos, com ou sem início de fonetização da escrita e estavam matriculados na Educação Infantil (pré II –crianças de 4 e 5 anos de idade, respectivamente) ou no 1º ano do ciclo de alfabetização.

Nesses casos, o critério principal mantinha-se o nível de aprendizagem, que algumas vezes coincidia ou confundia-se com a idade e/ou ano escolar das crianças.

Dessa forma, percebemos que a lógica que orientava a organização didática da professora não priorizava a classificação dos alunos por ano/série escolar. Isto fica evidenciado, além do que observamos em suas práticas, no seguinte trecho de sua entrevista inicial:

 

Pr: (...) Eu organizo assim: quem sabe ler e escrever, não importa a série em que ele está, como vocês observaram, tem uns alunos que estão no 2º ano, mas é só no papel, eles não acompanham aquelas crianças que estão no 3º ano, né? Então quem tem um nível mais desenvolvido fica tudo em uma turminha e os outros que tem mais dificuldade em outra turminha. E: Por que é que você organiza assim? Pr: Porque facilita o meu trabalho, as séries é só no papel, a realidade para mim que estou no dia-a-dia é o que importa. Assim fica melhor pra dar ma is atenção pra eles (...).

 

Assim, diferente de algumas pesquisas que identificaram a “reprodução” do currículo urbano/seriado nas turmas multisseriadas do campo (HAGE, 2011; SANTOS e SOUZA, 2013) a professora, do ponto de vista da organização do trabalho pedagógico, não nos pareceu seguir mecanicamente, de modo geral, a lógica da seriação ou da organização anual do ensino-o que coaduna com o apelo em defesa da “transgressão” do padrão da seriação para as escolas do campo (HAGE; BARROS, 2010).

Além disso, percebemos que os momentos com atividades diversificadas não foram exceção na organização didática e não consistiam em momentos pontuais da prática pedagógica, conforme observado em algumas pesquisas de contextos urbanos. Ao contrário, configuraram- se como uma característica estruturante da prática docente. A quantidade de momentos em que essas atividades aconteceram diariamente, a habilidade em conduzi-los e o bom aproveitamento do tempo escolar pela professora evidenciaram um planejamento prévio realizado pela docente, o que constitui elemento importante da prática alfabetizadora e do tratamento à diversidade de aprendizagens dos alunos.

No tópico seguinte, discutiremos a estratégia docente de realizar atividades diferenciadas em pequenos grupos ou em duplas.

 

Os exercícios diferenciados eram realizados em pequenos grupos ou em duplas

 

As atividades do componente de Língua Portuguesa realizadas em grupos ou em duplas ocorreram em 9 aulas, correspondendo a 75% das 15 jornadas de aula observadas. Se considerarmos os grupos e duplas realizados apenas com os alunos alfabéticos da turma, estes aconteceram em 8 aulas; já os alunos não alfabéticos foram organizados em duplas ou grupos em 6 aulas.

Dentre as atividades realizadas em grupo ou em duplas, os jogos de alfabetização se destacaram entre as mais utilizadas. Das 19 atividades realizadas, 10 delas (52,6%) foram com jogos de alfabetização, sendo 05 momentos de jogos em grupo com alunos alfabéticos e 05 com alunos não alfabéticos.

Em uma das situações, o jogo foi o mesmo para ambos os grupos de alunos, com diferenciações nas tarefas (leitura e escrita de palavras para os não alfabéticos e leitura de palavras e escrita de frases para os alfabéticos). Isso aconteceu na aula 10, com o jogo “pega palavras”, montado pela professora. Nos demais casos, os jogos foram distintos para os dois grupos de alunos.

Do ponto de vista do tratamento diversidade de aprendizagem da turma, é interessante observar que todos os 5 momentos de atividade coletiva envolvendo os jogos com as crianças alfabéticas desenvolveram-se com autonomia, sem o acompanhamento direto da professora. Nesse sentido, além da finalidade didática, os jogos cumpriam um papel pedagógico na organização do trabalho docente, uma vez que podiam ser realizados pelas crianças alfabéticas sem demandar o acompanhamento mais próximo da professora, possibilitando que ela o fizesse com o grupo de alunos não alfabéticos.

Por outro lado, observamos que em dois momentos (aulas 5 e 9) os alunos alfabéticos terminaram mais rápido de jogar e permaneceram por alguns momentos ociosos, aguardando orientações da professora sobre a próxima atividade. O problema da ociosidade de alguns alunos ou grupo de alunos em turmas multisseriadas relaciona-se diretamente ao tratamento da diversidade de aprendizagem, dentre outros aspectos, tais como a falta de apoio pedagógico ao professor, e também foi observado por em sua pesquisa.

Nesse sentido, a professora participante de nossa pesquisa, ao orientar os alunos alfabéticos que jogassem os jogos de alfabetização com autonomia, acabou, por outro lado, restringindo-se ao que estava proposto pelas regras dos mesmos, sem outro direcionamento mais específico em função dos objetivos e característica daquele grupo de alunos. Apesar de as crianças se envolverem com entusiasmo nos jogos, terminavam rapidamente de jogar e ficavam sem atividade específica para realizar em classe.

No caso das crianças não alfabéticas, acompanhadas diretamente pela professora em todas as situações coletivas de jogos de alfabetização, a docente fez adaptações. Além da leitura das palavras contidas nas cartelas do jogo e da identificação da letra faltante, a docente solicitou que todos escrevessem no caderno as palavras lidas.

Dessa forma, a professora preocupou-se em ajustar as regras do jogo às demandas do grupo de alunos não alfabéticos. O conhecimento das letras do alfabeto, sua nomeação e escrita também eram trabalhados nesses momentos, assim como alguns conhecimentos como o de que se escreve com letras e que elas possui em determinadas formas convencionadas socialmente.

Realizadas ludicamente, por ser em um contexto de jogo, pareceu-nos atividades ajustadas às necessidades e conhecimentos em leitura e escrita deste grupo de alunos – além de considerar a especificidade da idade das crianças, que variava de 3 a 6 anos neste grupo, ao propor momentos lúdicos de aprendizagem.

Além disso, ao propiciar a participação individual das crianças em meio às situações coletivas em cada grupo, a docente, potencialmente, favorecia interações e co-aprendizagem entre as crianças, uma vez que estas tinham a oportunidade de aprender com as respostas (convencionais ou não) de cada colega. Nesses momentos, por vezes, as próprias crianças chegavam à resposta, em cooperação umas com as outras.

No entanto, nem sempre a professora se valia de alguma hipótese infantil para confrontar intencionalmente com outras. Muitas vezes, a própria professora era quem adiantava a resposta convencional (tanto em situações de escrita como de leitura) para as crianças, numa conduta de tentar evitar o erro.

Ainda em relação ao conjunto de alunos não alfabéticos, as atividades em grupo praticamente restringiram-se aos jogos. Deste modo, entendemos que o critério de agrupam predominante adotado pela docente era o da homogeneização, uma vez que a professora organizou os grupos e duplas sempre de acordo com a proximidade de seus níveis de leitura. Isso ocorreu tanto com o grupo de alunos alfabéticos como com os não alfabéticos, a despeito da variedade de níveis existente em ambos os grupos.

Por vezes, a professora agrupou as alunas alfabéticas do 1º e 2º ano separadas dos alunos do 4º ano– o que ocorreu em quatro aulas e seis atividades. Dessas, quatro atividades foram de leitura (três delas em voz alta para toda a turma) e outras duas atividades foram de jogos (jogo do MEC e montagem de frases com as palavras da música “O pato”).

Tais estratégias de agrupamento conforme o nível de escrita, por outro lado, pareciam buscar atender à demanda diferenciada de desenvolvimento das atividades que subgrupos de alunos alfabéticos tinham, uma vez que, de modo geral, os do 4º ano realizavam com muita agilidade e facilidade as atividades propostas às alunas alfabéticas do 1º e 2º ano. 

Neste sentido, a professora mostrava-se ciente e procurava atender à heterogeneidade de conhecimentos destes alunos em relação aos demais.

O que queremos pontuar são os possíveis benefícios que a variedade maior de agrupamentos, inclusive mesclando, em alguns momentos, alunos de diferentes hipóteses e níveis de leitura e escrita, poderia acrescentar à prática alfabetizadora da professora (VIGOSTSKY, 2007).

Apesar disso, a professora, freqüentemente, solicitou que uns alunos auxiliassem os outros nas diferentes atividades e, em alguns momentos, os orientou quanto à condução da ajuda, para que esta não se restringisse às “respostas prontas” pelas crianças. Por outro lado, em outros momentos, a intervenção das crianças, ao auxiliar os demais colegas reproduzia, de alguma maneira, a conduta diretiva da professora como a estratégia docente de soletrar as palavras antes de lê-las, no intuito de que as crianças aprendessem a identificar e nomear as letras, era apropriado e reproduzido pelas crianças espontaneamente ao ensinar e ajudar os colegas.

De todo modo, o incentivo às interações entre as crianças não se restringiu aos pedidos explícitos da professora, uma vez que estas foram presenciadas por nós inúmeras vezes a cada jornada de aula e, recorrentemente, não eram tolhidas pela docente. Na aula 3, por exemplo, ao fazer a cópia do alfabeto maiúsculo, um aluno do pré II (escrita sem correspondência sonora) é corrigido por outro do mesmo ano escolar, porém que se encontrava já no início de fonetização da escrita. O aluno faz o seguinte comentário: “Não to acreditando, pro! Ele tá fazendo pequeno, professora...” Prof (refere-se à letra minúscula, que deveria ser escrita em maiúscula). A professora não escuta o comentário, mas o aluno corrigido pelo colega apaga o que tinha feito para fazer correto, conforme a instrução da outra criança.

Os jogos de alfabetização, jogados com autonomia pelas crianças alfabéticas eram potencialmente facilitadores de interações e aprendizagem mútua. No entanto, ao não serem explicitadas outras tarefas pela professora, para além das já propostas pelas regras dos jogos, em alguns casos fez com que estas se constituíssem de baixo desafio e fácil resolução pelas crianças alfabéticas.

Já no caso da leitura de textos em voz alta (em duplas ou trios), a atividade visava a fluência e adequação de alguns aspectos relacionados à oralização do texto escrito. A diferença de conhecimentos que havia entre as alunos alfabéticas do 1º ano e a do 2º ano (as primeiras tinham leitura mais fluente e menos trocas de letras na escrita), parecia contribuir com a aprendizagem de todas.

No entanto, em nossa perspectiva, as atividades em duplas e grupos mais diversificadas quanto à sua composição de alunos e mais variadas quanto aos eixos de ensino trabalhados poderia, talvez, contribuir para um atendimento da turma mais consciente e intencional por parte da professor a. O agrupamento em duplas, por exemplo, de maior ocorrência em outras pesquisas pouco estiveram presentes nas aulas da professora participante de nossa pesquisa.  Em contextos de multisseriação, acreditamos que esta poderia ser uma estratégia mais intencional de favorecimento da aprendizagem e da autonomia das crianças. As ressalvas que fazemos não desconsideram as condições de trabalho docente, em que a professora encontrava-se, via de regra, sozinha para fazer seu planejamento pedagógico, assim como para executar a atividade docente. Visam, tão somente, refletir sobre alguns aspectos que, caso melhor explorados, podem potenciar ainda mais a alfabetização em turmas multisseriadas, transformando o “problema” da diversidade da aprendizagem em “solução” pedagógica ou, ao menos, em parte desta solução.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Consideramos que as variadas estratégias de diversificação de atividades e os modos de acompanhamento docente, flexíveis e atentos às diferenças individuais, tinham como pressuposto e atendiam a heterogeneidade de aprendizagens da turma.

No entanto, o critério de agrupamento das crianças para realização das atividades em grupo e em duplas, embora se diferenciasse do critério formal dos anos em que as crianças estavam matriculadas, guiava-se pelo princípio da aprendizagem individual e não se modificava em função dos objetivos das atividades propostas. Ou seja, apesar da professora ter clareza sobre os níveis de aprendizagem em leitura das crianças da turma, e organizar as atividades didáticas em função deles, ela não parecia ter como pressuposto pedagógico a mescla de níveis de aprendizagem, do conhecimentos para potenciar as aprendizagens infantis (VIGOSTSKI, 2007).

Assim, tomado o conjunto da turma, a professora manejava bem o seu planejamento e ações. Sua forma de acompanhamento discente no decorrer das aulas também se valia desse pressuposto dos agrupamentos de acordo com o nível intelectual dos alunos.

No entanto, em nenhum dos estudos que levantamos na área encontramos o tratamento da diversidade de aprendizagens como pressuposto não apenas teórico, mas de articulação prática consistente e cotidiana, como foi o caso da professora de nossa pesquisa. São resultados que reforçam a necessidade e importância de que outros estudos em turmas multisseriadas investiguem as estratégias realizadas pelos professores-a fim de conhecer, problematizar e difundir tais estratégias entre professores destes e outros contextos escolares, uma vez que em todos eles o fenômeno da diversidade individual de aprendizagens está presente, independente da forma de organização escolar.

 

REFERÊNCIAS

 

BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo . Lisboa: Edições 70, 2002.

 

BOGDAN, Ro berto e BIKLEN, Sari.  Investigação Qualitativa em Educação. Portugal: Porto Editora, 1994.

 

CUNHA, Isabela Bilecki da. Mudanças na prática docente em sala de aula: lidando coma heterogeneidade no regime de ciclos. GT: Didática / n.04 30º Encontro  Anual da ANPED, 2007.

 

FERREIRO, E. A escrita antes das letras. In: SINCLAIR, H. (org.) A Produção de Notaçõ es na Criança. São Paulo: Cortez, 1989. (pp. 18-70)

 

FREITAS, Luiz Carlos de. A internalização da exclusão.

Educação &  Sociedade. Campinas: vol. 23, nº 80, set./2002

 

HAGE, Salomão. Escolas rurais multisseriadas e os desafios da Educação  do  Campo  de  qualidade na 

Amazônia. 2011.

 

MULRYAN-KYNE, C. The grouping practices of teachers in small two- teacher primary schools in the Republic of Ireland.

Journal of Research in Rural  Education . 20 (17), 2005.

 

PINHO, Ana Sueli Teixeira. A heterogeneidade fundante das classes  multisseriadas do meio rural: entre a persistência do passado e as imposições do presente. Salvador: UNEB, 2004 (Dissertação)

 

VIGOTSKY, Lev S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 7ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

 



[1] Atua na área educacional.