ORIENTAÇÃO À QUEIXA ESCOLAR
Raimunda Josefa Paulino
Vanessa Ramos
Lusineide Josefa Mendes
RESUMO:
Os encontros entre a psicologia e a educação no Brasil — e em outros países — são acontecimentos antigos. Foi criado em 1906 um laboratório de psicologia pedagógica junto ao Pedagogium no Rio de Janeiro; em 1927 Lourenço Filho realiza suas primeiras experiências com o teste ABC de maturidade para a leitura e escrita. Ao longo de sua história, as explicações para o fenômeno do fracasso escolar foram marcadas por análises do processo ensino- aprendizagem que se voltaram às capacidades e processos internos daquele que aprende, deixando de lado a pesquisa das condições de ensino em que o fracasso emergiu. Isto é, enfocaram o polo da aprendizagem, o aluno-problema, sem considerar o do ensino. A natureza dialética da relação entre estes dois componentes centrais do processo de produção do fracasso escolar deixou de ser apreendida.
PALAVRAS-CHAVE: Característica. Revelações. Críticas. Indicações. Perguntas.
INTRODUÇÃO:
No que diz respeito às teorias e práticas da psicologia voltada à escola como instituição, temos um marcado avanço nas últimas décadas. Ivana Serpentino de Castro Feijó (2000), em trabalho intitulado “O discurso de psicólogos escolares sobre sua prática: continuidade e ruptura,” analisa “... artigos das décadas de 80 e 90, que narram experiências de trabalho de psicólogos com a queixa escolar junto a instituições educativas, ou que discutem a atuação e o papel do psicólogo escolar. Uma ampliação das fontes de produção desses artigos, por exemplo, quando constata que, se na década de 1980 eram apenas as universidades públicas de oito estados brasileiros que produziam tais artigos (além de algumas particulares e psicólogos sem inserção em universidades), na de 1990 foi possível encontrar publicações de universidades públicas de todo o Brasil.
Além de tal disseminação de trabalhos de psicologia sobre a queixa escolar pelo país, há também uma mudança do foco destas experiências, deslocadas da criança e de sua família para a escola. Segundo Maria Helena Souza Patto (1990), o ano de 1977é um marco nesta ruptura temática: é quando “um grupo de pesquisadores da Fundação Carlos Chagas desenvolveu um conjunto de subprojetos de pesquisa voltados para a investigação da participação do sistema escolar no baixo rendimento das crianças dos segmentos sociais mais pobres” (p. 118). Seus resultados geraram novas pesquisas sobre fracasso escolar, que privilegiavam a participação da estrutura, funcionamento e dinâmica interna da instituição escolar no fenômeno.
No entanto, quando verificamos o que ocorre na chamada área clínica, isto é, nos atendimentos psicológicos a crianças e adolescentes encaminhados por queixas escolares, percebemos que esta mudança paradigmática, de maneira geral, não ocorreu. É como se, hegemonicamente, os avanços da psicologia a partir da pesquisa sobre fracasso escolar, da psicologia de grupos e instituições, da sociologia e da antropologia, não tivessem sido apropriadas pelas abordagens ditas clínicas das queixas escolares.
DESENVOLVIMENTO:
Clínicas-escola de importantes cursos de graduação em psicologia: permite pensar sobre a formação que os psicólogos vêm recebendo, no que se refere a como entender e lidar no contexto clínico com as queixas escolares. São queixas como: não sabe ler e escrever, só cópia, tem dificuldade em aprender, é desinteressado, é distraído em sala de aula, é agressivo para com os colegas, não obedece à professora, sai da sala de aula, atrapalha a turma etc.
Segundo sua pesquisa, os psicólogos que trabalham em tais clínicas e os estudantes que nelas fazem sua formação prática em atendimento psicológico clínico costumam responder a estas demandas psicologizando e patologizando as dificuldades vividas pelas crianças na escola. A análise do conjunto de tais dificuldades, à luz de conhecimentos da psicologia escolar crítica, indica que estas
estariam estreitamente relacionadas a certos funcionamentos da escola. No entanto, procuram-se dificuldades intelectuais e afetivas nas próprias crianças e em suas famílias que buscam ajuda dos psicólogos.
Ao final, estas costumam ser encaminhadas para uma ou mais psicoterapias e outros procedimentos especializados, confirmando que são elas próprias as principais responsáveis pelas dificuldades que atravessam. Excluem-se assim os fatores escolares envolvidos na produção de tais queixas.
No entanto, esse procedimento parece ser frequentemente rejeitado pela população. O psicodiagnóstico tradicional é, na grande maioria dos casos, interrompido pelas famílias: cerca de 38% desistem logo após a entrevista inicial realizada por psicólogos formados.
Entre os que dão continuidade ao psicodiagnóstico (afora os desistentes, os que estão em espera e os casos em que não se pôde detectar o que ocorreu), 55% abandonam-no antes do fim.
Vejamos rapidamente o que poderíamos considerar um caso comum, segundo tal pesquisa: em 2004, um menino teve, por problemas de ordem principalmente burocrática, três professoras no primeiro ano do ciclo básico. Sua classe toda ficou bastante transtornada com isto e seu processo de alfabetização foi prejudicado.
Passou automaticamente para o segundo ano, pois, como aluno da rede pública paulistana, está submetido a um sistema em que não acontecem retenções entre os anos do ciclo. No segundo ano foi considerado um aluno fraco. Suas necessidades pedagógicas eram de início de alfabetização. Mas a professora ensinou conteúdos típicos de segunda série e está criança, e sem poder corresponder ao que lhe era exigido, ficou praticamente esquecida no fundo da
classe. Já ao final do primeiro semestre tornou-se alheio em classe, quando não agressivo. Ao final do ano, sem ter avançado significativamente, do ponto de vista pedagógico e apresentando um comportamento cada vez pior, segundo a escola, foi encaminhado pela professora para um psicólogo.
Os pais, aflitos para ajudar seu filho, inscrevem-no no setor de psicologia do ambulatório de um hospital público próximo, da Unidade Básica de Saúde de seu bairro e na clínica psicológica de uma Faculdade de Psicologia.
A clínica da Faculdade é a primeira a chamá-lo. Os pais são recebidos por uma psicóloga formada, para uma entrevista de triagem.
Após queixarem-se do fato da criança estar indo mal na escola, o entrevistador, sem nada perguntar sobre essa instituição e o que nela a criança vem vivendo, passa a pesquisar gestação, parto, desenvolvimento neuro-psico-motor e relacionamento familiar (anamnese tradicional).
Os pais não retornam – e nem trazem seu filho. Souza chama a atenção para a concepção de queixa escolar subjacente ao procedimento do psicólogo em uma entrevista como a descrita acima: há uma hipótese básica de que a queixa escolar é um sintoma de conflitos internos de ordem emocional e/ou dificuldades neurológicas ou intelectuais da criança e/ou de sua família; emerge na escola devido aos desafios que esta instituição apresenta ou porque nela é visto o que a resistência da família não a permitiu ver.
Tal concepção estrutura, além da anamnese tradicional, os procedimentos psicodiagnósticos mais utilizados, marcados pela presença dos testes psicológicos, projetivos e de nível intelectual os testes padronizados de QI. Destacamos a presença destes últimos — os mais utilizados são o WISC (Escala Weschler de Inteligência para Crianças) e o Bender – como um fato especialmente preocupante, uma vez que muitos autores têm apontado a concepção estreita e ideológica de inteligência que os fundamenta, em que o que se procura medir é confundido com o instrumento de medida. Tautologicamente, inteligência é responder satisfatoriamente às questões do WISC.
Críticas a este tipo de aferição de inteligência, Collares e Moysés (1997) propõem o seguinte: “...é preciso aprender a olhar. Olhar o que a criança sabe, o que ela tem, o que ela pode, o que ela gosta... o profissional busca, nestas atividades, nas expressões que ela já adquiriu, o que subsidia e permite estas expressões. Ao invés de a criança se adequar ao que o profissional sabe perguntar, este é quem deverá se adequar às suas expressões, a seus valores, a seus gostos” (p. 85). Assim é possível ao profissional capacitado e sensível avaliar coordenação motora, noções espaciais, atenção/ concentração, possibilidade de suportar frustração e outras capacidades de uma criança através de um jogo de bolas de gude de uma maneira muito mais apurada do que através de um teste padronizado – uma situação rígida e previamente estabelecida.
Patto (1997) aponta o caráter de instrumento de dominação política destes testes, que têm como referência o universo cultural das camadas dominantes de um determinado momento histórico, e assim prestam-se a desqualificar e inferiorizar os dominados. Servem assim, como mordaça ideológica destes últimos, na medida em que colaboram para que se conformem com sua posição de base na pirâmide do poder, uma vez que têm, supostamente, inteligência inferior aos que ocupam seu topo. Apesar de críticas como estas e outras virem de longa data, os testes padronizados de QI seguem sendo largamente utilizados nos psicodiagnósticos. A aura de instrumentos científicos e objetivos que os envolve faz com que psicólogos, pais e educadores tenham dificuldades em questionar seus resultados, mesmo que sejam discrepantes em relação ao que diz sua convivência com a criança testada, o que faz destes instrumentos um importante estruturador das relações que se estabelecem com ela e, consequentemente, de seu processo
de subjetivação. Recebendo tal formação os psicólogos das clínicas públicas e/ou privadas tendem a repetir esta conduta em seu trabalho. É o que nos mostra um levantamento de demanda e procedimentos dos psicólogos da rede municipal de saúde de São Paulo realizado em uma ampla região da cidade – o Distrito de Saúde Grajaú, Interlagos e Parelheiros, na Zona Sul (Bueno, Morais e Urbinatti, 2001)
É interessante notar a ampla coincidência dos resultados deste levantamento e do de Souza: em ambos a demanda de 7 a 14 anos é predominantemente de queixas escolares, da ordem de dois terços. Ambos, ao analisar a conduta dos psicólogos ou estudantes de psicologia no caso específico de queixas escolares, concluem que os contatos com a escola ocorrem em proporções muito reduzidas, da ordem de menos de 10%. Souza destaca ainda, com relação a tais condutas, a presença marcante de testes psicológicos, projetivos e/ou de nível mental, da ordem de mais de dois por psicodiagnóstico. No caso dos profissionais da saúde, no entanto, desdobrou-se de tal levantamento um amplo processo de discussão dos resultados, que culminou em uma série de estudos e ações no sentido de transformar radicalmente seu entendimento e intervenção nos casos de queixas escolares. O grupo passou a desenvolver trabalhos sistemáticos, organizados e permeados de reflexões conjuntas e estudos teóricos, junto a educadores e escolas. Tais trabalhos e seus resultados trouxeram maior clareza acerca da necessidade de incluir a escola no processo de pesquisa e intervenção nas dificuldades do processo de escolarização, além do desenvolvimento de diversas outras percepções e novas práticas, mais satisfatórias e eficazes.
Assim, por exemplo, após um ano de reuniões quinzenais sistemáticas com os professores de uma escola que encaminhava muitos alunos à Saúde Mental da Unidade Básica de Saúde próxima, este grupo de professores tornou-se mais seguro e autônomo para lidar com os alunos, passando a encaminhar significativamente menos.
Considerações finais:
Há alguns encontros com a criança em que esta situação é tematizada e repensada, levando em conta sua história escolar e a manifestação de sua inteligência em atividades não escolares.
Entra-se em contato com a escola e discute-se esta situação com a professora e a coordenadora pedagógica. As educadoras, então, resinificam esta criança. Seu discurso, que inicialmente identificava uma suposta desestrutura e desinteresse familiar como fatores determinantes na progressiva apatia do aluno, modificasse. Passam a entender que, para além dos fatores familiares, a necessidade de propostas pedagógicas adequadas a essa e outras crianças, a desestruturação e desmotivação que atingiu o corpo docente pela maneira autoritária e excludente em relação aos professores com que os ciclos na Educação foram instituídos e outras questões de cunho escolar são, provavelmente, os determinantes maiores do fracasso escolar desse e de outros alunos.
Ao mesmo tempo, uma psicóloga escolar vinculada à Secretaria de Educação do Município, está desenvolvendo um trabalho nessa escola. Reúne-se quinzenalmente com os professores com o objetivo de potencializar a equipe docente, que se encontra desintegrada e paralisada. Num primeiro período predominam as queixas e a impotência, porém o grupo constrói condições internas para passar para um outro momento. Começam a ser resgatadas experiências bem-sucedidas e a potência do grupo aflora. É neste momento que ocorre a visita da psicóloga do ambulatório. A possibilidade da mudança do olhar sobre a criança teve, nas discussões quinzenais coordenadas pela psicóloga escolar, referências importantes, sem as quais talvez não existisse ou fosse menor. E o encontro com a psicóloga do ambulatório foi levado à reunião e tornou-se ponto de partida para um projeto voltado às crianças “copistas”. Trata-se de um exemplo fictício que, esperamos, possa tornar-se real e frequente. Há condições para tal, uma vez que o número de administrações públicas que vêm instituindo a figura do psicólogo escolar é crescente. No Estado de São Paulo, por exemplo, temos, nos últimos dez anos, a implantação de serviços de psicólogos junto a Secretarias de Educação de diversos municípios, como Osasco, Suzano, Jandira, Cotia e muitos outros. Este crescimento dá-se num momento em que a categoria tem avançado em suas práticas institucionais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUENO, M.T.B., MORAIS, M.L.S. e URBINATTI, A.M.I. Queixa Escolar: proposta de um modelo de intervenção. In: MORAIS, M.L.S. e Souza, B.P. Saúde e Educação: muito prazer. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.
FEIJÓ, I.S.C. O discurso de psicólogos escolares sobre sua prática: continuidade e ruptura. Dissertação (mestrado). São Paulo: Instituto de Psicologia-USP, 2000.
MOYSÉS, M.A.A., e COLLARES, C.A.L.Inteligência abstraída, crianças silenciadas: as avaliações de inteligência. Psicologia e Razão
Instrumental, Revista Psicologia USP. São Paulo: Instituto de Psicologia-USP, v. 8, n.1, p. 63-89, 1997.
PATTO, M.H.S. A produção do fracasso escolar. São Paulo: T.A. Queiroz, 1990.
__________. Psicologia e Ideologia: uma introdução crítica à psicologia
escolar. São Paulo: T.A. Queiroz, 1984.
__________. Para uma crítica da razão psicométrica.. Psicologia e Razão Instrumental. Revista Psicologia USP. São Paulo: Instituto de Psicologia- USP. v. 8, n.1, p. 47-62, 1997.
SOUZA, M.P.R. A queixa escolar e a formação do psicólogo. Tese (doutorado), São Paulo: Instituto de Psicologia-USP. 1996. p. 176-197.