Aplicações educacionais da ABA no contexto do Transtorno do Espectro Autista
Andréa Bezerra Ferreira
Antonio Carlos de Lima Oliveira
Ladyanne Peasion Gomes Sereparan
Lígia Mara Ormond Pereira
Maria José Nunes Mota
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) constitui uma condição do neurodesenvolvimento caracterizada por desafios na comunicação social, padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses e atividades (APA, 2014). Estima-se que, no Brasil, aproximadamente uma em cada 36 crianças esteja dentro do espectro, o que torna essencial a proposição de práticas pedagógicas inclusivas e eficazes no ambiente escolar (SOUZA et al., 2024).
A inclusão escolar de estudantes com autismo é um direito garantido por legislações nacionais, como a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), que afirma a obrigatoriedade de oferta de atendimento educacional especializado e de adaptações razoáveis para garantir o acesso, permanência, participação e aprendizagem. No entanto, a simples inserção física desses alunos em salas de aula regulares não assegura o desenvolvimento efetivo de suas potencialidades, exigindo intervenções fundamentadas em evidências científicas.
Dentre as abordagens baseadas em evidências, destaca-se a Análise do Comportamento Aplicada (Applied Behavior Analysis - ABA), definida como:
a ciência na qual os procedimentos derivados dos princípios do comportamento são sistematicamente aplicados para melhorar comportamentos socialmente significativos (COOPER; HERON; HEWARD, 2007, p. 20, tradução nossa).
A ABA vem sendo amplamente estudada e implementada em contextos clínicos e educacionais, demonstrando eficiência na aquisição de habilidades cognitivas, sociais, comunicacionais e adaptativas por indivíduos com TEA (SILVA, 2017; DIAS et al., 2023; ALMEIDA; SILVA, 2023).
Este artigo justifica-se pela necessidade de aprofundar a discussão acerca do uso da ABA como ferramenta pedagógica no contexto educacional brasileiro, especialmente frente às demandas por uma educação inclusiva de qualidade. Com base em uma revisão de literatura recente, busca-se analisar criticamente as contribuições da ABA para o desenvolvimento integral de crianças com autismo inseridas no ambiente escolar.
O objetivo central deste trabalho é analisar e discutir as principais contribuições da ABA para o desenvolvimento educacional de crianças com TEA, considerando aspectos acadêmicos, sociais, comunicacionais e comportamentais. Além disso, serão discutidos os desafios éticos e metodológicos associados à implementação da ABA nas escolas.
Esta seção aprofunda a discussão sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA) no contexto educacional e detalha os fundamentos e as aplicações da Análise do Comportamento Aplicada (ABA) como abordagem interventiva, culminando na análise de suas contribuições e desafios.
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é caracterizado, conforme manuais diagnósticos como o DSM-5 e a CID-11, por déficits persistentes na comunicação e interação social em múltiplos contextos, além da presença de padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades (APA, 2014; WHO, 2019). É fundamental reconhecer a heterogeneidade inerente ao espectro, o que implica uma vasta gama de manifestações e, consequentemente, necessidades educacionais diversificadas. Cada indivíduo no espectro apresenta um perfil único de habilidades e desafios, demandando um olhar individualizado no planejamento pedagógico.
No ambiente escolar, crianças com TEA frequentemente enfrentam desafios significativos que podem impactar seu processo de aprendizagem e inclusão. Dificuldades na adaptação a novas rotinas e ambientes, desafios na socialização e interação com pares e professores, barreiras na comunicação verbal e não verbal, especificidades no processo de aprendizagem acadêmica e a manifestação de comportamentos desafiadores (como estereotipias, interesses fixos intensos ou dificuldades sensoriais) são aspectos comuns que requerem atenção e estratégias específicas (DA ROSA HOFZMANN et al., 2019).
A escola inclusiva desempenha um papel crucial ao acolher esses estudantes, buscando garantir não apenas o acesso, mas a permanência e a participação efetiva. A legislação brasileira, como a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI - Lei nº 13.146/2015) e a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, ampara o direito à educação de qualidade para todos, incluindo alunos com TEA, preconizando a oferta de recursos e suportes necessários (BRASIL, 2015). Nesse cenário, a busca por práticas pedagógicas baseadas em evidências torna-se essencial para promover o desenvolvimento integral desses alunos.
A Análise do Comportamento Aplicada, conhecida pela sigla ABA (do inglês, Applied Behavior Analysis), é definida como uma ciência aplicada que deriva dos princípios do Behaviorismo Radical, notadamente dos estudos de B.F. Skinner sobre o comportamento operante (COOPER; HERON; HEWARD, 2007). Seu foco reside na aplicação sistemática de princípios comportamentais para a melhoria de comportamentos socialmente relevantes.
Os princípios básicos que norteiam a ABA incluem o conceito de comportamento operante (aquele que produz consequências e é afetado por elas), o reforçamento (processo pelo qual uma consequência aumenta a probabilidade futura de um comportamento ocorrer, podendo ser positivo – adição de um estímulo – ou negativo – remoção de um estímulo aversivo), a punição (processo que diminui a probabilidade futura de um comportamento, cujo uso na ABA contemporânea é restrito e cercado de considerações éticas), a extinção (suspensão do reforço que mantinha um comportamento) e o controle de estímulos (influência que os estímulos antecedentes exercem sobre o comportamento) (COOPER; HERON; HEWARD, 2007).
A prática em ABA confere grande ênfase à observação direta e à mensuração objetiva dos comportamentos-alvo, bem como à análise funcional do comportamento. A análise funcional busca identificar as relações entre os antecedentes, o comportamento em si e suas consequências, a fim de compreender a função que determinado comportamento exerce para o indivíduo no seu ambiente. Essa compreensão é crucial, pois a intervenção eficaz depende da identificação correta da função do comportamento. A coleta sistemática de dados é outro pilar da ABA, permitindo monitorar o progresso do indivíduo e orientar a tomada de decisões clínicas e educacionais de forma contínua e informada (ROSENWASSER; AXELROD, 2001).
A ABA oferece um repertório vasto de estratégias e técnicas que podem ser adaptadas e implementadas no contexto educacional para apoiar o desenvolvimento de crianças com TEA. Dentre as mais conhecidas, destaca-se o Ensino por Tentativas Discretas (DTT - Discrete Trial Training). Essa estratégia estrutura o ensino em unidades pequenas e claras (antecedente → resposta → consequência), sendo frequentemente utilizada para o ensino de habilidades acadêmicas básicas, linguagem receptiva e expressiva, e imitação (DIAS et al., 2023).
Em contrapartida, o Ensino em Ambiente Natural (NET - Natural Environment Teaching) e abordagens como o Treinamento em Resposta Pivotal (PRT - Pivotal Response Training) focam na incorporação do ensino às rotinas e atividades naturais da criança, utilizando sua motivação intrínseca e promovendo a generalização das habilidades aprendidas para diferentes contextos e pessoas (SOUZA et al., 2024).
O uso de Suportes Visuais é outra ferramenta poderosa da ABA, auxiliando na compreensão de rotinas, na antecipação de eventos e na comunicação. Agendas visuais, quadros de rotina, cartões de comunicação (como os utilizados no sistema PECS - Picture Exchange Communication System) e outras ajudas visuais podem reduzir a ansiedade e aumentar a independência e a participação do aluno nas atividades escolares (BRITES; BRITES, 2019).
Para lidar com comportamentos desafiadores, a ABA preconiza a realização da Análise Funcional do Comportamento (FBA - Functional Behavior Assessment) para identificar a função subjacente ao comportamento. Com base nessa análise, elabora-se um Plano de Intervenção Comportamental (BIP - Behavior Intervention Plan), que inclui estratégias proativas e reativas, sempre com foco no ensino de comportamentos mais adaptativos (RIBEIRO, 2021).
O ensino de Habilidades Sociais e de Comunicação é central, utilizando técnicas como modelagem, role-playing, vídeo-modelagem e reforçamento diferencial de aproximações sucessivas. Por fim, estratégias explícitas para promover a Generalização (uso da habilidade em diferentes contextos) e a Manutenção (persistência da habilidade ao longo do tempo) são componentes essenciais de qualquer programa baseado em ABA, garantindo que as aprendizagens sejam funcionais e duradouras (ALMEIDA; SILVA, 2023).
Um corpo crescente de pesquisas tem demonstrado a eficácia das intervenções baseadas em ABA para promover avanços significativos no desenvolvimento educacional de crianças com TEA. Estudos apontam melhorias no desempenho acadêmico, incluindo progressos em habilidades fundamentais como leitura, escrita e matemática, através de estratégias de ensino estruturadas e individualizadas (DIAS et al., 2023).
No campo da comunicação, a ABA contribui para o desenvolvimento da linguagem funcional, tanto verbal quanto não verbal. Estratégias como o ensino de mando, tato e intraverbal são eficazes para ampliar o repertório comunicativo e reduzir frustrações associadas à dificuldade de se expressar (ALMEIDA; SILVA, 2023). O aumento da interação social e o desenvolvimento de habilidades de brincar também são resultados frequentemente observados, com intervenções focadas no ensino de iniciar e manter interações, seguir regras sociais e engajar-se em brincadeiras apropriadas com os pares (ROSA; SILVA, 2022).
A redução de comportamentos desafiadores é outra contribuição importante da ABA. Ao identificar a função desses comportamentos e ensinar habilidades alternativas mais adequadas para alcançar o mesmo objetivo, a frequência e a intensidade dos comportamentos inadequados tendem a diminuir (SOUZA et al., 2024).
Adicionalmente, a ABA promove a autonomia e a independência do aluno em rotinas escolares, como seguir instruções, organizar materiais, cuidar da higiene pessoal e participar de atividades de grupo. A facilitação do processo de adaptação e inclusão escolar também é um resultado relevante, como demonstrado por estudos que utilizaram estratégias comportamentais para aumentar a participação e interação de crianças autistas na pré-escola (MARTINS et al., 2023).
Apesar das evidências de eficácia, a implementação da ABA no contexto educacional requer atenção a diversas considerações importantes e enfrenta desafios significativos. Primeiramente, a qualidade da intervenção depende da presença de profissionais qualificados, com formação específica em Análise do Comportamento e com supervisão adequada (MIZAEL; RIDI, 2022).
A individualização do plano de intervenção é outro aspecto crucial. É essencial que a avaliação inicial seja abrangente e que o plano terapêutico e educacional seja desenhado especificamente para as necessidades de cada criança (ALMEIDA; SILVA, 2023). A colaboração entre terapeutas, equipe escolar e família é fundamental para garantir a consistência das estratégias e potencializar os resultados.
Questões éticas também permeiam a prática da ABA. O foco deve estar sempre no bem-estar da criança, no respeito à sua autonomia e dignidade. Críticas e debates atuais sobre a ABA, incluindo preocupações levantadas por autistas adultos, devem ser considerados na prática profissional (MIZAEL; RIDI, 2022).
No contexto brasileiro, desafios adicionais incluem o acesso limitado a serviços de ABA, custo elevado, carência de profissionais e necessidade de investimento na formação de educadores e terapeutas. Superar esses obstáculos é essencial para que mais crianças com TEA possam se beneficiar das contribuições da ABA em seu percurso educacional.
A Análise do Comportamento Aplicada (ABA) configura-se como uma das abordagens mais robustas e embasadas cientificamente para promover o desenvolvimento global de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) no contexto educacional. Ao aliar rigor metodológico à sensibilidade às necessidades individuais, a ABA oferece estratégias que favorecem não apenas a aquisição de habilidades acadêmicas, comunicacionais e sociais, mas também a redução de comportamentos desafiadores, contribuindo para a construção de trajetórias escolares mais inclusivas e bem-sucedidas.
Conforme evidenciado ao longo deste trabalho, a efetividade da ABA está diretamente relacionada à aplicação sistemática e contextualizada de seus princípios, o que exige formação continuada de professores, supervisão técnica qualificada e articulação intersetorial entre educação, saúde e família. Embora os resultados empíricos apontem para ganhos significativos no desempenho e na participação de alunos com TEA, os desafios éticos, logísticos e estruturais persistem, especialmente em relação à equidade no acesso a essas intervenções em diferentes regiões do país.
Por último, torna-se urgente que políticas públicas priorizem a formação docente em práticas baseadas em evidências, promovam a ampliação do acesso à ABA no ambiente escolar e assegurem o suporte contínuo necessário para a implementação sustentável dessas estratégias. Somente com investimento estruturado e compromisso institucional será possível transformar a inclusão escolar de crianças com autismo de uma diretriz normativa em uma realidade concreta, justa e emancipadora.
Referências
ALMEIDA, A. B. de; SILVA, M. C. da. A análise do comportamento aplicada (ABA) como ferramenta no processo de ensino-aprendizagem da criança com transtorno do espectro autista. Belém: ESMAC, 2023.
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-5). 5th ed. Arlington, VA: American Psychiatric Publishing, 2014.
BRASIL. Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 152, n. 127, p. 2, 7 jul. 2015.
BRITES, Luciana; BRITES, Clay. Mentes únicas: Aprenda como descobrir, entender e estimular uma pessoa com autismo e desenvolva suas habilidades impulsionando seu potencial. São Paulo: Gente, 2019.
COOPER, J. O.; HERON, T. E.; HEWARD, W. L. Applied behavior analysis. 2. ed. Upper Saddle River: Pearson, 2007.
DA ROSA HOFZMANN, Rafaela et al. Experiência dos familiares no convívio de crianças com transtorno do espectro autista (TEA). Enfermagem em Foco, Brasília, v. 10, n. 2, p. 46–50, 2019.
DIAS, R. I. R. et al. Uma análise da eficácia da ABA na melhoria das habilidades sociais e comportamentais em indivíduos no espectro autista. Brazilian Journal of Implantology and Health Sciences, v. 5, n. 6, p. 2088–2103, 2023. Disponível em: https://bjihs.emnuvens.com.br/bjihs/article/view/818. Acesso em: 03 jun. 2025.
MARTINS, J. S. et al. A adaptação de crianças com autismo na pré-escola: estratégias fundamentadas na Análise do Comportamento Aplicada. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 104, e5014, 2023. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbeped/a/RFv9XMsqs6YgVxB9RHGBjtz/. Acesso em: 03 jun. 2025.
MIZAEL, T. M.; RIDI, C. C. F. Análise do comportamento aplicada ao autismo e atuação socialmente responsável no Brasil: Questões de gênero, idade, ética e protagonismo autista. Perspectivas em Análise do Comportamento, v. 13, n. 1, p. 1–15, 2022. Disponível em:
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RIBEIRO, Camila. Estimulação precoce em crianças com TEA: principais benefícios. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento, v. 6, n. 2, 2021. Disponível em:
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ROSENWASSER, Beth; AXELROD, Saul. The contributions of applied behavior analysis to the education of people with autism. Behavior Modification, v. 25, n. 5, p. 671–677, 2001.
ROSA, S. O. da; SILVA, M. A. da. Análise do comportamento aplicada (ABA) e sua contribuição para a inclusão de alunos com autismo graus II e III. Cadernos da FUCAMP, v. 21, n. 48, p. 1–17, 2022. Disponível em:
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