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Moacir “filho da dor” - construção de um novo mundo. Literatura Brasileira

Priscila Quintino da Silva Costa

Adineia Santos Souza

Neiva Carvalho Costa

Evellyn Marilaine Mascarenhas Almeida

 

DOI: 10.5281/zenodo.14224105

 

 

RESUMO

O artigo "Moacir: Filho da Dor – Construção de um Novo Mundo" explora o simbolismo de Moacir, cujo nome significa "filho da dor" em tupi-guarani, como metáfora para a transformação e resiliência humana diante do sofrimento. Através da dor, compreendida como elemento essencial da experiência humana, emerge a possibilidade de reconstrução, tanto individual quanto coletiva. O texto analisa como o enfrentamento das adversidades pode servir como ponto de partida para a criação de um mundo mais empático, solidário e renovado. Ao conectar a figura de Moacir às heranças culturais e aos desafios contemporâneos, o artigo reflete sobre o potencial transformador do sofrimento na construção de novas realidades.

 

Palavras-chave: Simbolismo. Resiliência. Reconstrução. Transformação. Desafios.

 

 

Introdução

 

Esse trabalho propõe-se a refletir acerca da construção da identidade brasileira como uma nação mista, procurando encontrar traços dessa brasilidade no romance Iracema de José de Alencar (1865). Para tanto, tomaremos como base teórica elementos discursivos e ideológicos, seguindo o dialogismo de Mikhail Bakhtin (1929) e o interdiscurso de Michel Pêcheux (1969). A partir daí, procuramos explicitar o diálogo entre a narrativa indianista alencariana e a questão imemorial da colonização do Brasil como lugar de um já-dito que sempre retorna quando se quer tratar da identidade híbrida brasileira. Na obra de José de Alencar, Iracema, percebemos que em vários momentos ele exalta a beleza, a força, a garra do índio do Brasil, ficando, claro, na obra, esse retorno às origens para que, de certa forma, possa enaltecer o povo brasileiro.

Notamos um atravessamento de discursos, de colonização, do descobrimento, de exaltação da raça, e também a questão da identidade brasileira. Esses efeitos, no texto alencariano, são possibilitados porque, segundo Bakhtin, um texto (discurso), por alguns aspectos, mantém relações com outros textos (outros discursos), já que para ele todo texto é atravessado por outro texto, ou outros anteriores. Podemos dizer, dessa forma, que um texto sempre fala o que já foi falado. Relacionado ao conceito de interdiscurso, dizemos que o discurso colonial, presente em Iracema, funciona não como uma originalidade, mas como uma matriz de sentidos que é reverberado para se falar da híbrida brasilidade.

Assim, é evidente que através do dialogismo e do interdiscurso presente na obra Iracema, a história da colonização e da mestiçagem do povo brasileiro ganha uma forma diferente, através do gênero romance, no qual Iracema se apaixona por um guerreiro branco-colonizador. A Virgem abandona sua tribo e segue ao lado do seu amor, Martim. Desse encontro das personagens Iracema (índia) e Martim (português branco) nasce Moacir (que significa o “filho da Dor”) como significante da mistura do povo brasileiro. Iracema é o símbolo sob o qual se transmite o mito da constituição das raças e o início da sociedade; Moacir é a realidade idealizada da nação.  Nesse sentido, podemos dizer que o discurso literário pode ser um meio viável para construir a imagem de uma nação.

 

 

Desenvolvimento

 

Romance Indianista.

 

Após ter conquistado a independência o Brasil necessitava de alguma maneira enaltecer e divulgar as riquezas e belezas existentes em nossa terra, pois devido à invasão a tomada da terra brasileira pelos portugueses, o nosso povo não conseguia expressar a sua própria identidade, pois o povo português que estavam no Brasil tentava a todo o momento instaurar a cultura deles em nosso país, apagando desta forma as nossas características culturais e ideológicas, passando assim a impor a cultura deles, e isso tudo se deu devido à tentativa de catequizar os índios do Brasil.

Devido a todo esse processo de colonização até a conquista da tão desejada independência, o povo brasileiro sentiu o real desejo de transcender o verdadeiro significado do valor da independência, da liberdade, da conquista. Partindo desse princípio José de Nicola completa dizendo que:

 

“Em 1822, D. Pedro I concretiza um movimento que se fazia sentir, de forma mais imediata, desde 1808: a independência do Brasil. A partir desse momento, o novo país necessita inserir-se no modelo moderno, acompanhando as nações independentes da Europa e América. A imagem do português conquistador deveria ser varrida; há a necessidade de autoafirmação da Pátria que se formava.” (NICOLA, José de. Literatura brasileira das origens aos nossos dias. ed.9ª. p.53)

 

Deste modo, com base nestas características, em meados de 1836 surge no Brasil o Romantismo que foi uma arte literária que se preocupou principalmente em expressar às singularidades do Brasil, foi um movimento que passou a divulgar a independência cultural do país, através de uma arte literária que possuía características notavelmente nacionais. Esse período promovia a valorização dos elementos locais, a exaltação da natureza, busca-se o passado histórico. Esta tendência nacionalista colocou o romance romântico como uma forma de investigação da realidade brasileira. Para tanto podemos considerar a arte romântica como sendo uma resposta ao momento histórico, social e político vivido pelo Brasil naquela época. É importante considerar que muitas das características do período Romântico do Brasil, foram extraídas do Romantismo europeu, e estas vieram a calhar perfeitamente ao espírito e a necessidade de valorização da cultura brasileira, pensando-se desta forma na construção ideológica nacional. Antonio Candido diz que “graças ao Romantismo, a nossa literatura pôde se adequar ao presente”. (2000)

O romantismo deste modo é tido como instrumento de apoio na busca de elevação da cultura brasileira.  Antonio Candido diz ainda que:

 

“Com efeito, a literatura foi considerada parcela dum esforço construtivo mais amplo, denotando o intuito de contribuir para a grandeza da nação. Manteve-se durante todo o Romantismo este senso de dever patriótico, que levava os escritores não apenas a cantar a sua terra, mas a considerar as suas obras como contribuição ao progresso”. (CANDIDO, Antonio, 1918 – Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6.ed. Belo Horizonte, Editora Itatiaia Ltda., 2000).

 

 Partindo do princípio de Antonio Candido, podemos salientar que a literatura romântica brasileira foi o alicerce da idealização da cultura do nosso país, pois essa se preocupava em valorizar todos os aspectos culturais existentes no Brasil.

 No entanto devemos considerar que o romantismo surgiu no Brasil em um momento histórico de muita desordem, confusão e insegurança, o país nesse período buscava incessantemente a sua independência, e devido a isso passa por momentos de conturbação, tento como estopim de todo esse conflito o espírito de autoritarismo de D.Pedro I. Dessa forma, embasado neste contexto de independência, de liberdade é que surge o desejo de expressar o sentimento nacionalista, representado pelos autores românticos brasileiros.   

Podemos acrescentar que o romantismo foi um período em que os autores expressavam de forma significativa os seus reais sentimentos, eles valorizavam os seus desejos e emoções, cria-se um sujeito individualista, que se volta para o eu, esquecendo-se da coletividade existente no período clássico, os poetas românticos necessitavam a todo o momento transparecer o se eu, revelar os seus desejos e paixões, e a natureza nesse período passa a ser exaltada não apenas como meio de nacionalismo, de patriotismo, mas sim também como uma forma de refúgio desse eu, o qual necessita sair um pouco do tumulto existente nas cidades, para um lugar tranquilo, onde o poeta possa a se expressar com mas emoção, e com  mas sentimento.

O autor José de Nicola (1988) completa argumentando sobre o sentimentalismo dos poetas românticos, como sendo fator de grande importância para a elaboração da literatura romântica.

 Dizendo que:

 

“Outra característica marcante do Romantismo e verdadeiro “cartão de visita” de toda escola foi o sentimentalismo, a valorização dos sentimentos, das emoções pessoais: é o mundo interior que conta, o subjetivismo. E à medida que se volta para o eu, para o individualismo, o pessoalismo, perde-se a consciência do todo, do coletivo, do social. A constante valorização do eu gera o egocentrismo; os poetas românticos se colocavam como o centro do universo. É evidente que daí surge um choque entre a realidade e o seu mundo. A derrota inevitável do eu leva a um estado de frustração e tédio. Daí as seguidas e múltiplas fugas da realidade: o álcool, o ódio, as “casas de aluguel” (prostíbulos), a saudade da infância, a idealização da sociedade, do amor e da mulher. No entanto, essas fugas têm idas e volta exceção feita à maior de todas as fugas românticas: a morte. ”(NICOLA, José de. Literatura brasileira: das origens aos nossos dias. 9.Ed, Editora Scipione Ltda., 1988.)

 

Esteticamente os autores do período Romântico, como já mencionados anteriormente, valorizavam o nacionalismo, a exaltação da natureza e da pátria, e na criação de um herói que representasse o nosso país, deste modo o índio foi o sujeito escolhido pelos autores do período romântico para ser o grande herói nacional, pois este obtinha todas as características necessárias para tal função, devemos considerar que o branco não poderia ser, pois este só nos reportava há um passado de colonização e sofrimento, o negro muito menos, pois este era estrangeiro, possuindo assim outra cultura, outras características, assim coube ao índio o papel de herói nacional, de representante da pátria.

O autor Antonio Candido, completa dizendo que:

 

“A forma reputada mais lídima de literatura nacional foi, todavia, desde logo, o indianismo, que teve o momento áureo do meado do decênio de 40 ao decênio de 60, caindo a partir daí até que os escritores se convencessem da sua inviabilidade. Naquele momento, porém, encontrou em Gonçalves Dias e José de Alencar representantes do mais alto quilate”.( CANDIDO, Antonio, 1918 – Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6.ed. Belo Horizonte, Editora Itatiaia Ltda., 2000).

 

José Martiniano de Alencar foi um dos principais representantes do romance indianista brasileiro, pois este em muitas de suas obras demonstrava todos os aspectos dessa estética, como a valorização da natureza, dos elementos locais, da cultura brasileira, e uma de suas grandes obras foi Iracema. José de Alencar nasceu em Mecejana, Ceará, em 1829, e morreu o no Rio de Janeiro, em 1877. Foi um dos maiores escritores do romantismo brasileiro, escreveu Iracema, obra a qual iremos analisar.

 

 

Enredo.

Iracema virgem dos lábios de mel é uma guerreira da nação Tabajara, está repousando em claro da floresta. Quando de repente, aparece entre as folhas um guerreiro, Martin. Iracema assustada atira uma fechada em Martin, no entanto, logo se arrepende e quebra com o estrangeiro a “flecha da paz”, ato que simboliza a amizade.

 A Virgem Iracema convida Martin para seguir com ela rumo à grande taba dos tabajaras e a cabana do pajé, Araquém, pai de Iracema, onde é recebido com hospitalidade.

Passado uns dias, Martin começa a sentir saudades da sua terra, lembra do lugar onde nasceu das pessoas que lá deixou. Iracema, com a intenção de animá-lo, o leva até o bosque sagrado da jurema e lá serve para ele, em uma folha, gotas de um estranho licor. Martin bebe e começa a sonhar com Iracema, abraça-a, mas logo Iracema se solta. Ao sair do bosque a virgem encontra Irapuã, assustada questiona com ele o motivo que o leva ao bosque, irapuã diz que foi a sua procura, pois na taba avia dito que o estrangeiro teria ido à cabana de Araquém. Iracema no mesmo instante diz que o estrangeiro é hospede de Araquém, ao ouvir isto Irapuã cheio de ciúmes, afirma que o estrangeiro vai morrer.

 

“Rugiu de sanha o chefe tabajara:__ A raiva de Irapuã só ouve agora o grito de vingança. O estrangeiro vai morrer. __ A filha de Araquém é, mas forte que o chefe dos guerreiros, disse Iracema travando da inúbia. Ela tem aqui a voz de Tupã, que chama seu povo. __ Mas não chamará! Respondeu o chefe escarnecendo. ” (Iracema: Lenda do Ceará, 1997. P.27.)

 

Iracema avisa a Martim que quem ficasse com ela morreria e que então, já que não poderiam ficar juntos, e que deveria partir. Deste modo o guerreiro decide ir embora, Caubi, irmão de Iracema segue junto com ele, a fim de protegê-lo. Ca cabana do pajé a índia escuta o grito de guerra de Caubi, desesperada sai correndo em direção á ele, e o encontro defendendo Martin dos guerreiros enviados por Irapuã. No entanto os guerreiros pitiguaras ouviram os gritos de guerra e saíram para enfrentar Irapuã, que temendo o confronto fugiu.

Logo após os três Iracema, Martin e Caubi decidem voltar à grande taba, a fim de descansar um pouco. Já era noite quando o guerreiro branco e Iracema ouviram o grito do guerreiro Poti, amigo pitiguara de Martim, o qual lhe transmite um recado, dizendo que veio para protegê-lo, pois os guerreiros tabajaras estavam a cominho para matá-lo. Deste modo ambos decidem fugir e o melhor dia seria o dia da festa que aconteceria na taba, pois os guerreiros passariam a noite no bosque sagrado e receberiam do Pajé os sonhos alegres. Dessa forma, todos dormiriam e Martim poderia partir.

Chega à festa da lua, cada guerreiro embevecido sente a felicidade viva em seus sonhos. Enquanto isso Iracema acompanha Poti e Martim até onde acabam os campos dos tabajaras. Antes da partida Iracema confessa que já não pode mais separar-se do estrangeiro, pois já é sua esposa. Traiu o segredo da jurema. Os guerreiros tabajaras acordam e seguem em busca de Iracema e do estrangeiro. Trava-se um intenso combate entre tabajaras e potiguaras. Caubi parte para cima de Martim, para vingar a virgindade da irmã. Iracema pede a Martim que não lute com seu irmão, pois se ele tivesse que morrer seria pelas mãos de Iracema. Ela pensava mais em Martim, que em sua própria raça e em si mesma. Os tabajaras fogem. O chão fica coberto, aquele sangue que cobria a terra, era o mesmo sangue que lhe ardia nas faces de vergonha diante dos cadáveres de seus irmãos. Iracema chora, no entanto, decide ficar ao lado do marido.

A alegria morava na alma de Iracema, era feliz ao lado do esposo. Toda manhã Martim partia para a caça com Poti e Iracema ficava a se banhar na lagoa. Certo dia, Martim e Poti voltaram da caça e encontraram Iracema com a cintura e o colo repletos de flores, uma que era o símbolo da fecundidade, Iracema esperava um filho do guerreiro branco.

A alegria ainda morou na cabana por um bom tempo, até que Martim avista um grande barco dos brancos, de muitas velas e sente saudades da sua terra natal. O que antes era a felicidade passou a não, mas despertar no estrangeiro as mesmas emoções. Já não ia caçar em companhia do amigo e, imerso em seus pensamentos, cada vez mais se afastava da esposa que entristecia a cada dia com a distância que se instalava entre ela e o esposo. Poti recebe um chamado para lutar pela nação pitiguara e Martim o acompanha.

Certa tarde, Martim e o amigo retornam da batalha, haviam vencido, no entanto, Iracema continua a ficar cada vez mais triste. Diz a Martim que quando seu filho nascer, ela morrerá assim o guerreiro não teria mais o que o prendesse nas terras estrangeiras e poderia voltar para Portugal.

 

“Uma vez o cristão ouviu dentro em sua alma o soluço de Iracema: seus olhos buscaram em torno e não a viram.

A filha de Araquém estava além, entre as verdes moitas de ubaia, sentada na relva. O pranto desfiava o seu belo semblante; e as gotas que rolavam uma e uma caíam sobre o regaço, onde já palpitava e crescia o filho do amor. Assim caem as folhas das arvores viçosas antes que amadureça o fruto.

__O que espreme as lagrimas do coração de Iracema?

__Chora o cajueiro quando fica tronco seco e triste. Iracema perdeu sua felicidade, depois que te separaste dela.

__Não estou eu junto de ti?

__Teu corpo está aqui; mas tu” lma voa à terra de teus pais, e busca a virgem branca, que te espera.” (Iracema: Lenda do Ceará, 1997. P.57.)

 

Martim e Poti seguem novamente para, mas uma batalha, deixando Iracema novamente sozinha, neste dia a índia percebe que seu filho iria nascer, o bebê nasce entre um misto de tristeza e amor. Iracema o nomeia Moacir – filho da dor.

Passado algum tempo Martim e Poti retornam vencedores de mais uma batalha, todavia, Martim teme se aproximar da sua cabana sente que sua alma vai sofrer. Caminha vacilante até encontrar Iracema com o filho no colo. Iracema já sem forças entrega a criança ao pai, e desfalece Iracema já não vive. Depois de um tempo Martim segue embora para Portugal levando consigo o filho.

 

 

José de Alencar e o Romance na formação discursiva

 

 José de Alencar foi um dos autores que, mas representou as características indianistas no romance brasileiro, pode se dizer que ele de fato instaurou o romance na literatura brasileira, por colocar em muitos de seus poemas traços da nacionalidade brasileira. Pois em suas obras encontramos aspectos da literatura indianista, como a exaltação da natureza e das nossas paisagens, do índio e suas características, inserindo desta forma o regionalismo na literatura.

Analisando profundamente a obra de José de Alencar, Iracema, notamos a existência de vários discursos, tanto indianista, social, cultural, sobretudo um discurso de colonização, fica claro o atravessamento desses discursos, possibilitando assim a existência de um novo discurso.

Contudo devemos considerar, discurso como sendo a manifestação de sentidos que o enunciado transmitiu, devemos levar em conta a relação intersubjetiva, do autor com o leitor, como sendo uma relação de crescimento, de significação, no qual se permite a argumentação, o diálogo entre os dois sujeitos, possibilitando dessa forma a construção da realidade, construindo um novo olhar acerca das questões políticas brasileiras, por meio de uma obra literária, um romance.  Pois ao produz enunciado, o autor também produz os seus discursos, que nada mais é que o sentido obtido pelo leitor ao ler os enunciados. O discurso passa a ser entendido como transmissão de informação, de um sujeito para outro.

Como diz a autora Eni Orlandi que:

 

“Na realidade, a língua não é só um código entre outros, não há essa separação entre emissor e receptor, nem tampouco eles atuam numa sequência em que primeiro um fala e depois o outro decodifica etc. Eles estão realizando ao mesmo tempo o processo de significação e não estão separados de forma estanque. Além disso, ao invés de mensagem, o que propomos é justamente pensar aí o discurso. Desse modo, diremos que não se trata da transmissão de informação apenas, pois, no funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história, temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e produção de sentido e não meramente transmissão de informação”. (ORLANDI, Eni P. Análise do discurso: princípios e procedimentos, Eni P. Orlandi 7ª Edição, Campinas, SP: Pontes, 2007.)

 

Em Iracema, obra de José de Alencar, fica evidente a presença desses diálogos entre a narrativa e o locutor, pois ao escrever a obra indianista, o autor retoma fatos de um passado histórico do Brasil, fazendo com que o leitor encontre aspectos desse passado, o qual passa a partir de então a construir um novo conceito de mundo. Esse diálogo entre os sujeitos passa a ser entendido como dialogismo, e um dos autores que melhor abrange esse conceito é o teórico Michael Bakhtin que diz: 

“O dialogismo decorre da interação verbal que se estabelece entre o enunciador e o enunciatário, no espaço do texto. Se nessa concepção de dialogismo aparece a relação eu-tu, que faz pensar em subjetivismo, como em Benveniste e sua correlação de subjetividade, deve-se observar não ser esse modo de ver de Bakhtin. Para o autor, só se pode entender dialogismo interacional pelo deslocamento do conceito de sujeito. O sujeito perde o papel de centro e é substituído por diferentes 9ainda que duas) vozes sociais, que fazem dele um sujeito histórico e ideológico”.(Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade: Em torno de Bakhtin / Diana Luz Pessoa de Barros e José Luiz Fiorin (orgs.). - 2. ed. 1 reinpr. - São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003).

A partir de então podemos considerar que o Autor busca elementos de uma dada realidade para constituir o seu próprio discurso, a fim de estabelecer uma relação dialógica com o leitor, o discurso do escritor passa então a contribuir para a construção ideológica do sujeito social. Pensando ideologia no sentido geral, como visão de mundo, como a forma de o autor interpretar dados de sua realidade, mas que, ao serem representados no seu texto, na sua obra, deixam rastros desse seu posicionamento social.

Partindo desse princípio, dizemos então que a maneira com que um dado discurso, através de elementos sociais, culturais, religiosos, dialoga com outro discurso, ou então, a partir do primeiro, constitui-se possibilidades de construção de um novo discurso, a qual o leitor constrói após ter analisado o discurso passado, e estes acabam por meio dessa integração enriquecendo ideologicamente o indivíduo a qual está sujeito ao discurso, e consequentemente a própria sociedade a qual está inserido.

Pensando nesse aspecto Fiorin diz que:

 

“O discurso não é, pois, a expressão da consciência, mas a consciência é formada pelo conjunto dos discursos interiorizados pelo individuo ao longo de sua vida. O homem aprende como ver o mundo pelos discursos que assimila e, na maior parte das vezes, reproduz esses discursos em sua fala.” (FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia / José Luiz Fiorin. – 8.ed. (ver. E atualizada). – São Paulo: Ática, 2007. P.35.)

 

Podemos desenvolver esse questionamento argumentando acerca da obra de José de Alencar, pois vários dos discursos introduzidos na obra Iracema, contribuíram e muito para a construção do indivíduo como ser social e independente, e também para a sociedade da época, pois a obra exalta o que há de melhor em nosso país, divulga a identidade da nação brasileira, através de um romance nacional, em que o índio brasileiro é representado por José de Alencar em sua obra como sendo um herói natural, guerreiro valente, e que como todo herói tem na morte o seu triunfo, Iracema foi uma heroína que morreu por amor, que lutou muito pelo seu amor por Martin, deixando de lado até a sua tribo para viver com o estrangeiro.

Considera-se então que no Romantismo há a necessidade da valorização da raça, da sociedade, da cultura, e isso se dá através da literatura romântica, os quais se constituem por meio dos discursos utilizados pelo autor.

Segundo Eni Orlandi a memória tem função primordial na formação de discursos, pois é devido a ela que conseguimos nos reportar a um passado histórico, e a partir de então obter argumentos para a construção de um novo discurso. “E nessa perspectiva, ela é tratada como interdiscurso.” (2007.p.31.).

Marisa Grigoletto completa dizendo que:

 

“Pêcheux e Fuchs (1975, p.177) explicam a relação da formação discursiva com um exterior heterogêneo, isto é, com o interdiscurso, afirmando que “uma formação discursiva é constituída-margeada pelo que lhe é exterior, logo por aquilo que ai é estritamente não-formulável, já que a determina.”( GRIGOLETTO, Marisa. A resistência das palavras Discurso e colonização britânica na Índia.)

 

Dessa forma podemos considerar que o interdiscurso é uma das partes que contribuem para a formação do discurso, pois é a partir de discursos construídos em um outro momento histórico que obtemos dados para a formulação de um novo discurso. No entanto não podemos considerar esse novo discurso como sendo uma repetição daquele primeiro discurso, pois devemos considerar que são outros sujeitos vivendo em um outro contexto histórico, uma nova sociedade, dessa forma não tem como supor que um discurso é cópia de um outro. Podemos dizer então que o interdiscurso é a maneira pela qual o autor assimila os discursos de outrora, e os transporta para o seu meio social, ideologicamente, tentando dessa forma transmitir para o leitor um novo conceito social, uma nova visão de mundo, com base em um discurso que foi posto anteriormente.

Segundo Grigoletto:

 

“O interdiscurso é o domínio do dizível que constitui as formações discursivas. Ou seja, o que pode ser dito em cada formação discursiva depende daquilo que é ideologicamente formulável no espaço do interdiscurso”. (GRIGOLETTO, Marisa. A resistência das palavras Discurso e colonização britânica na Índia.)

 

 Dessa forma podemos destacar na obra de José de Alencar, Iracema, a presença do interdiscurso, desse domínio do que foi posto anteriormente, em outro momento histórico anterior, o qual é assimilado pelo autor constituindo, deste modo um novo discurso com uma outra forma estética, nesse caso um romance romântico indianista. A obra Iracema, nos permite através da memória como diz Eni Orlandi (2007) nos reportar a um passado histórico, e através dele identificar a nossa história, a nossa cultura, e por meio desse obter informações que contribuam ideologicamente para o nosso contexto social.

Conforme Eni Orlandi:

 

“Paralelamente, é também o interdiscurso, a historicidade, que determina aquilo que, da situação, das condições de produção, é relevante para a discursividade. Pelo funcionamento do interdiscurso, suprime-se, por assim dizer, a exterioridade como tal para inscrevê-la no interior da textualidade. Isso faz com que, pensando-se a relação da historicidade (do discurso) e a história (tal como se dá no mundo), é o interdiscurso que especifica, como diz M. Pêcheux(1983), as condições nas quais um acontecimento histórico (elemento histórico descontinuo e exterior) é suscitável de vir a inscrever-se na continuidade interna, no espaço potencial de coerência próprio a uma memória”.(ORLANDI, Eni P. Analise do discurso: princípios e procedimentos, Eni P. Orlandi 7ª Edição, Campinas, SP: Pontes, 2007.p.33)

 

Observamos em Iracema, que o autor utiliza-se de um discurso passado de política, religião, de independência, para construir o seu discurso romântico. Isto é evidente, pois ao lermos a obra notamos que José de Alencar, narra a chegada do branco colonizador ao Brasil em busca de riquezas e também a tentativa de catequizar os índios, no entanto essa narrativa é constituída de forma diferente, pois é outro momento histórico, com uma outra ideologia. Podemos considerar que o autor utiliza-se de fragmentos desse passado histórico de tomada da terra brasileira pelos branco-colonizador, e também da posterior independência, para construir o seu romance romântico, Iracema, e é claro com uma outra perspectiva, pois na obra a índia se apaixona por Martin, a qual e mantém uma relação intensa com o estrangeiro, José de Alencar deixa isto bem expresso na obra, o branco se encanta pela índia, a qual também demonstra o seu amor por Martin, deixando de lado até a sua tribo para viver com o estrangeiro.

 A partir de então, do encontro de Iracema com Martin, é que podemos argumentar acerca do mito da mestiçagem, pois é dessa relação entre os indivíduos com características diferentes que nasce Moacir que significa filho da dor, o qual pode ser considerado o símbolo da mistura do povo brasileiro, de um povo heroico, e constituinte do novo mundo, de novas culturas, costume e ideologias.

Considerando este novo mundo, como sendo a consolidação de uma raça, a qual ganha agora status de modernidade, pois Martim era um europeu que conhecia toda a cultura industrial, e este ao se relacionar com Iracema, constrói possibilidades de uma integração cultural, pois há o atravessamento de duas culturas distintas, construindo a partir desse encontro uma nova cultura, um novo mundo, com uma nova ideologia.

Assim podemos concluir que Moacir pode ser entendido como sendo o representante verdadeiro da união de duas culturas distintas, pois esse é o fruto da miscigenação da unificação das raças, e constituinte de uma nova nação idealizada, de um povo guerreiro, valente, de uma cultura inigualável, pois carrega no sangue a garra e as crendices dos nativos brasileiros, e a modernidade cultural dos portugueses, fruto do encontro da virgem Iracema, nativa das terras brasileiras, com Martin guerreiro branco.

 

 

Conclusão

 

Concluímos que a obra, Iracema, de José de Alencar, autor do período romântico brasileiro contribui e muito para esse pensamento de transformação e integração cultural, através de um romance romântico nitidamente nacional, que buscava a todo momento enaltecer o que há de melhor em nosso país, valorizando o índio e a sua linguagem. Compreendendo também a miscigenação que se deu com o nascimento de Moacir, representante do novo mundo.

 

 

Referências

 

ALENCAR, José de, 1829 – 1877. Iracema: lenda do Ceará / José de Alencar; biografia, introdução e notas por M. Cavalcanti Proença. - Rio de Janeiro; Ediouro, 1997. - (biblioteca Folha; 3).

 

Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade: Em torno de bakhtin / Diana Luz Pessoa de Barros e José Luiz Fiorin (orgs.) - 2. Ed. 1. reimpr. - São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.

 

NICOLO, José de. Literatura Brasileira: das origens aos nossos dias. 9. Ed. Editora Scipione Ltda.

 

ORLANDI, Eni P. Análise do discurso: princípios e procedimentos, Eni P. Orlandi. 7ª Ed., Campinas, SP: Pontes, 2007.

 

FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia / José Luiz Fiorin. - 8ª ed. (rev. E atualizada) – São Paulo: Ática, 2007.

 

LYRA, Pedro. Literatura e ideologia. ed. Vozes Ltda. Rio de Janeiro.

 

GRIGOLETTO, Marisa. A resistência das palavras Discurso e colonização britânica na Índia.