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A Educação Especial, Neuropsicopedagogia Institucional e a aplicação da lei 13.146/2015

Angélica de Oliveira Quirino

 

DOI: 10.5281/zenodo.14166202

 

 

Resumo

O presente trabalho tem como objetivo apresentar como o instituto da curatela foi modificado pela Lei 13.146 de 2015, também conhecida como o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Através da análise da evolução histórica do direito brasileiro, perpassando pelo conceito de incapacidade civil plena, outrora injustamente atribuído aos deficientes, até chegarmos ao direito moderno, onde o portador de deficiência deixa de ser plenamente incapaz, passando a usufruir de todos os direitos e deveres da vida civil necessitando apenas de um curador para assisti-lo. Buscamos ainda, apoiados no direito comparado e com base nas diversas doutrinas sobre o tema, esclarecer pontos obscuros oriundos da interpretação hermenêutica no tocante à possibilidade da assunção de responsabilidades por parte do portador de deficiência mesmo que de forma assistida. Como procedimento metodológico utilizou-se a revisão de literatura. Nas considerações finais é destacado que o papel da jurisdição voluntária é de assistência a particulares e de tutela dos direitos primados pela Constituição Federal, o Estatuto da Pessoa com Deficiência e as adequações impostas por esse à interdição e à curatela, estão em consonância com a função social jurisdicional e com as garantias fundamentais protegidas constitucionalmente.

 

Palavras Chave: Jurisdição. Curatela. Estatuto. Deficiência. Decisão.

 

 

Introdução

 

Na história da humanidade, o Estado surgiu e se fortaleceu como um ente responsável e capaz de solucionar os conflitos entre os indivíduos, de modo a promover a pacificação social por meio da jurisdição. Por consequência, o Direito passou a existir em função da vida social, favorecendo o amplo relacionamento entre as pessoas e os grupos sociais. Na medida em que se estruturou como um responsável pela jurisdição, o Estado passou a ser demandado para outras funções e deveres dentro da tutela dos direitos e garantias. Neste sentido, surgiu a jurisdição voluntária, uma atividade jurídica do Estado voltada à defesa de direitos e às ações decisórias sem conflitos, diferente da ideia central de jurisdição apenas como um meio de solução de lides, passando a ser compreendida como o meio no qual o Estado realiza a tutela assistencialmente a particulares. (GRINOVER, CINTRA E DINAMARCO, 2009, p.24)

Dentre as modalidades conhecidas de jurisdição voluntária, disciplinadas no Novo Código de Processo Civil, encontra-se a Curatela, um instituto jurídico pelo qual, uma pessoa maior que não possui a plena capacidade civil é assistida por outrem que goze desta faculdade, de modo que possa exercer seus direitos. (BRASIL, 2015)

A Curatela surge no sentido de ajudar a pessoa que não possui plena capacidade civil, encontra-se em consonância com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada no Brasil em 2009, e que visa trazer maior apoio e visibilidade às pessoas com deficiência.

Por muitos anos a jurisdição voluntária, através da Curatela, foi o meio encontrado pelo Direito como o organismo capaz de promover a eficácia da situação jurídica e proteger os direitos envolvidos de pessoas que não podem realizar a sua plena capacidade civil. Todavia, em 2015, foi sancionada a Lei conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) que alterou as noções capacidade civil de pessoas com deficiência. A aprovação do Estatuto implicou em uma mudança do procedimento de interdição, e garantiu maior autonomia à pessoa com deficiência, ensejando, por conseguinte, em alterações nos entendimentos sobre a curatela, de modo a excluir a total interdição, além de instituir a possibilidade da Tomada de Decisão Apoiada.

Assim, o presente trabalho tem como escopo estudar a curatela enquanto jurisdição voluntária e apresentar como o instituto foi modificado pela Lei 13.146 de 2015, de modo trazer como problema de pesquisa, as implicações da alteração da capacidade civil de pessoas com deficiência e a inclusão da Tomada de Decisão Apoiada no Direito brasileiro. O objetivo é compreender o impacto desta nova forma de se ver a pessoa com a deficiência. O trabalho será possibilitado tomando por base a comparação legislativa antes e depois do advento da lei de 2015.

Por fim, pode-se afirmar que o trabalho se justifica pela necessidade de expandir o conhecimento sobre a Tomada de Decisão Apoiada para melhor apoio às pessoas com deficiência, tendo em vista a proposta de uma sociedade cada vez mais inclusiva.

 

 

Metodologia

 

Quanto à universalidade da pesquisa científica, Booth, Colomb e Williams (2000) salientam que este processo é desenvolvido em todas as áreas do conhecimento.

Todavia, para assegurar o prestígio e confiabilidade deste processo, é necessária a adoção do método de pesquisa adequado, capaz de contemplar da melhor forma possível o problema de investigação (VERA, 1980)

Deste modo, a metodologia das pesquisas científicas pode ser classificada e definida conforme sua abordagem, finalidade e procedimentos técnicos empregados (GIL, 2010; VERGARA, 2006). A presente pesquisa é qualitativa, visando analisar a legislação e o seu impacto legal e social.

Assim sendo, para a construção do artigo foi utilizada a revisão de literatura, em um método de coleta de dados nas doutrinas especializadas no tema. A revisão de literatura é o processo de busca, análise e descrição de um corpo do conhecimento em busca de resposta a uma pergunta específica (GIL, 2010).

Em um processo de pesquisa, a literatura cobre todo o material relevante que é escrito sobre um tema, como: livros, artigos de periódicos, artigos de jornais, registros históricos, relatórios governamentais, teses e dissertações e outros tipos.

A revisão de literatura pode ser vista como o momento em que se prepara o referencial do trabalho, ao citar uma série de estudos prévios que servirão como ponto de partida para a pesquisa, de modo a afunilar a discussão em tela, trazendo com isto uma síntese, capaz de concluir acerca do que se propõe o problema de pesquisa.

Devido à especificidade jurídica do tema do presente trabalho, além das doutrinas civilistas e processualistas, foi necessário lançar mão do amplo uso da legislação pura, de modo a compreender a alteração legislativa e todas as consequências legais e sociais.

 

 

Revisão de literatura

 

Jurisdição voluntária

 

Grinover, Cintra e Dinamarco (2009, p.20) afirmam que durante os primeiros povos, a estrutura social não era organizada em torno de um Estado suficientemente forte capaz de promover a pacificação dos conflitos transindividuais de seus cidadãos, não existindo um direito que prevalecesse como uma vontade supraindividual e impositiva sob os comportamentos. Nestes períodos, prevalecia apenas as vontades individuais impostas pelo uso exclusivo da força, o que se denomina autotutela. (GRINOVER, CINTRA E DINAMARCO, 2009, p.20) Observando-se este modelo de prevalência de uma força, é possível perceber que as comunidades não atingiam seus ideias de justiça e pacificação, o sistema jurídico rudimentar estabelecido promovia uma sensação de insegurança, vingança e injustiça. Com a evolução dos sistemas políticos, que fomentou a presença de um ente político e administrativo superior, capaz de tratar de matérias em esfera coletiva, o Estado acabou surgindo e fortalecendo-se de modo que posteriormente, pode impor-se diante os particulares, estabelencendo-se assim como uma via de soluções para os conflitos entre os particulares GRINOVER, CINTRA E DINAMARCO, 2009, p.24)

A partir do momento que o Estado estabeleceu sua soberania, tomou para si o monopólio da solução dos conflitos entre indivíduos ou entre estes e demais instituições da comunidade ao qual era responsável. Este dever de resolução de lides foi denominado jurisdição, segundo a qual, era uma “atividade mediante a qual os juízes estatais examinam as pretensões e resolvem os conflitos”. (GRINOVER; CINTRA; DINAMARCO, 2009, p.25). Assim, a jurisdição pode ser entendida como uma das expressões do poder estatal, caracterizando-se como a capacidade que o Estado tem, de decidir imperativamente e impor decisões. (GRINOVER; CINTRA; DINAMARCO, 2009).

Ao agirem em substituição às partes, o juiz impede que uma delas utilize da força para obter a vitória em uma lide, sendo assim por meio de uma heterocomposição. Segundo Didier Jr. (2017, p.173):

a jurisdição é a função atribuída a terceiro imparcial de realizar o Direito de modo imperativo e criativo (reconstrutivo), reconhecendo, efetivando, protegendo situações jurídicas concretamente deduzidas , em decisão insuscetível de controle externo e com aptidão para tornar-se indiscutível (DIDIER JR., 2017, p.173)

No Direito moderno, a jurisdição passou a ser exercida por meio do processo, que balizado por princípios, busca a isonomia, a celeridade e as soluções mais justas para os conflitos expostos.

O Estado tem a função de promover a plena realização dos valores humanos, viabilizando, assim, a consecução do bem-comum. Sua função jurisdicional pacificadora serve como fator de eliminação dos conflitos que assolam os indivíduos, mas, para isso, há a necessidade de se fazer do processo um meio efetivo para a realização da justiça. (...) Diante dos enormes e diversos problemas sociais, o processo tornou-se um instrumento essencial à tutela da ordem jurídica material. Além disso, o processo é um poderoso instrumento voltado para servir à sociedade e ao Estado; é o único método capaz de assegurar, pacificamente, a estabilidade da ordem jurídica e, consequentemente, proporcionar a pacificação social. (IBIAPINA, 2005).

Sob esta nova visão da solução de conflitos por meio da jurisdição, por consequente, o Direito, desde o seu processo legislativo até a resolução do conflito em si, passa a existir em função da vida social. Em outras palavras, a sua finalidade, com o advento da jurisdição, é a de favorecer o amplo relacionamento entre as pessoas e os grupos sociais, e ser uma das bases do progresso da sociedade. Sobre este novo papel, Noberto Bobbio assim apresenta:

Entre os múltiplos significados da palavra Direito, o mais estreitamente ligado à teoria do Estado ou da política é o do Direito como ordenamento normativo. Esse significado ocorre em expressões como “Direito positivo italiano” e abrange o conjunto de normas de conduta e de organização, constituindo uma unidade e tendo por conteúdo a regulamentação das relações fundamentais para a convivência e sobrevivência do grupo social, tais como as relações familiares, as relações econômicas, as relações superiores de poder, também chamadas de relações políticas e, ainda a regulamentação dos modos e das formas através das quais o grupo social reage à violação das normas de primeiro grau ou a institucionalização da sanção. Essas normas têm como escopo mínimo o impedimento de ações que possam levar à destruição da sociedade, a solução dos conflitos que a ameaçam e que tornariam impossível à própria sobrevivência do grupo se não fossem resolvidos, tendo também como objetivo a consecução e a manutenção da ordem e da paz social. (BOBBIO, 2004, p.39).

No Brasil, adotou-se o mesmo modelo de solução dos conflitos, e este sistema foi reforçado com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que fomentou o papel do Estado como o detentor da jurisdição, ao disciplinar no art. 5º, inciso XXXV, que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direito".

A jurisdição é uma das mais importantes técnicas de tutela de direitos. Todas as situações jurídicas ativas (direitos em sentido amplo) merecem proteção jurisdicional. Marcelo Lima Guerra afirma que a jurisdição civil tem a função específica de proteger direitos subjetivos (art. 5, XXXV, CF /1988)23. É preciso fazer uma pequena correção ou esclarecimento: "direito subjetivo" deve ser compreendido como sinônimo de situação jurídica ativa, individual ou coletiva, simples ou complexa, direito potestativo ou direito a uma prestação. Todas sem exceção. (DIDIER JR., 2017, p.181)

Ainda, em legislação infraconstitucional, o Novo Código de Processo Civil, determinou as devidas proteções, funções e deveres da jurisdição dentro do Direito Processual brasileiro. O mesmo documento definiu o que convencionou chamar de jurisdição voluntária. Segundo a pesquisa realizada, a jurisdição evoluiu ao ponto de não somente solucionar conflitos, passando a ser demandada também para outras situações que podiam envolver algum grau decisório ou de tutela para situações não conflituosas, como por exemplo, na existência de uma pessoa incapaz de exercer seus desejos e vontades, e que necessita de uma especial assistência. Neste caso, a Curatela é um instituto jurídico, no qual o Estado vem a zelar pelo indivíduo nomeando alguém como o seu curador. Observa-se que no referido exemplo, não há conflito de interesses, apenas uma demanda especial ao Estado, que exerce sua vontade por meio, também, da jurisdição. Didier Jr. ( 2017, p. 209) define que a jurisdição voluntária:

É uma atividade estatal de integração e fiscalização. Busca-se do Poder Judiciário a integração da vontade, para torná-la apta a produzir determinada situação jurídica. Há certos efeitos jurídicos decorrentes da vontade humana, que somente podem ser obtidos após a integração dessa vontade perante o Estado-juiz, que o faz após a fiscalização dos requisitos legais para a obtenção do resultado almejado. (DIDIER JR., 2017, p. 209)

Do ponto de vista procedimental e da legalidade, as regras comuns são delimitadas nos arts. 719 a 725, do Código e Processo Civil de 2015, e as especiais pelos arts. 726 e seguintes. São exemplos de jurisdição voluntária:

instaura-se o processo por petição inicial, por provocação do interessado, do Ministério Publico ou da Defensoria Pública (art. 720, CPC)73, com atribuição de valor da causa (que, no caso, é estimado pelo autor) e identificação da providência judicial almejada; as despesas processuais, de acordo com o art. 88 do CPC, são antecipadas pelo requerente e rateadas entre todos os interessados; os interessados têm o prazo de quinze dias para poder manifestar-se (art. 721 do CPC); a Fazenda Pública será sempre ouvida, nos casos em que tiver interesse (art. 722, CPC); o Ministério Público será ouvido, apenas nos casos do art. 178 do CPC (art. 721); o pedido será resolvido em dez dias, por sentença, que é apelável (arts. 723-724 do CPC). (DIDIER JR., 2017, p.210)

Segundo Didier Jr. (2017, p.213), pode-se afirmar que prevalece na doutrina brasileira a concepção de que a jurisdição voluntária é a “administração pública de interesses privados feita pelo Poder Judiciário”, sendo a corrente majoritária, sem desconsiderar parte dos estudiosos que defendem a ideia de que é uma atividade de natureza jurisdicional, bem como as demais, embora venha a tutelar outras demandas diferentes dos conflitos. A discussão em si quanto à natureza não é pacificada, entretanto, o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de uma decisão, conseguiu delimitar um melhor posicionamento, segundo o qual partiu da premissa da concepção "administrativista da jurisdição voluntária", porém declarando que “não é possível rever decisão em jurisdição voluntária, ressalvada a existência de fato superveniente, como em qualquer decisão”. (DIDIER JR., 2017, p.218)

Destarte, pode-se afirmar que a jurisdição voluntária, difere-se do sentido inicial dado à jurisdição como pacificador social, e para dirimir os conflitos sociais, sendo assim, uma atividade judicial ao qual o Estado realiza a tutela assistencialmente aos interesses particulares, utilizando-se de seus mecanismos e aparelhos para a eficácia de uma situação fática ou jurídica particular e diferente das lides impostas à jurisdição comum.

Curatela no Novo Código de Processo Civil (NCPC)

 

A Curatela é um instituto jurídico que diz respeito diretamente à capacidade civil dos indivíduos. Segundo apresenta o Código Civil (2002), todas as pessoas nascidas com vida são dotadas de direitos inerentes à sua existência, como a dignidade e a segurança, todavia, somente alguns desses indivíduos possuem o que é denominado como, a capacidade civil, por não conseguirem exprimir suas vontades ou por não estarem cobertos pela plena compreensão da realidade e de suas implicações. A capacidade civil somente pode ser exercida por pessoas que possuem aptidão para exercer pessoalmente os seus atos jurídicos e aspectos volitivos, sendo que, a incapacidade é resguardada àqueles que possuem limitações orgânicas e psicológicas.

Na presença da incapacidade civil de maiores de idade, surge a figura da Curatela, abordada no Código Civil (2002) e no Código de Processo Civil (2015). Para o Direito Civil, a Curatela é um encargo, cuja pessoa investida na posição assistencial, passa a ter o dever de solidariedade com o Estado e demais pessoas daquela sociedade, cabendo ao Estado, regular as garantias individuais e coletivas, além de assegurar a prestação jurisdicional, conforme explica Gonçalves (2014, p.94), “Curatela é encargo deferido por lei a alguém capaz, para reger a pessoa e administrar os bens de quem, em regra maior, não pode fazê-lo por si mesmo”.

No âmbito processual, a Curatela é apontada como uma das modalidades de jurisdição voluntária, por necessitar de participação do Estado e da jurisdição, mesmo que ausente a relação conflituosa, uma vez que o Estado é responsável pela proteção dos direitos de cada indivíduo na sociedade brasileira e o ente capaz de tutelar os interesses de todos.

De acordo com o que dispõe o Código Civil, a Curatela se destina àqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade, os ébrios habituais e os viciados em tóxico e os pródigos (art. 1.767, CC/2002). Afirma Stolze (2017, p. 1347) que a Curatela "visa proteger a pessoa maior, padecente de alguma incapacidade ou de certa circunstância que impeça sua livre e consciente manifestação de vontade, resguardando-se, com isso, também, o seu patrimônio".

Uma vez que a curatela é um encargo que enseja em um cuidado e comportamento probo e idôneo, por parte do curador, o Código Civil estabelece uma ordem preferencial de escolha que aproxima o responsável pelo interditado em algum grau de parentesco ou de amizade, dando-se preferência a cônjuge ou companheiro, seguido dos descendentes. Segundo Gonçalves (2014, p. 95), a curatela tem como características:

A curatela apresenta cinco características relevantes: a) os seus fins são assistenciais;

  1. b) tem caráter eminentemente publicista; c) tem, também, caráter supletivo da capacidade; d) é temporária, perdurando somente enquanto a causa da incapacidade se mantiver (cessada a causa, levanta-se a interdição); e) a sua decretação requer certeza absoluta da incapacidade.

Conforme explica o autor, o caráter publicista advém do fato de ser dever do Estado zelar pelos interesses dos incapazes, entrando nesta seara a proteção processual dada pela jurisdição voluntária, de tal forma que o Novo Código de Processo Civil (NCPC), de 2015, disciplina a matéria em seus arts. 747 a 758, instituindo a forma e o procedimento para sua decretação.

Segundo o NCPC, a interdição pode ser promovida pelo cônjuge ou companheiro, pelos parentes ou tutores, pelo representante de entidade em que se encontra abrigado o interditando ou pelo Ministério Público, sendo a legitimidade comprovada por documentação juntada ao pedido inicial. Ressalta-se que, ao Ministério Público somente é legitimo promover a interdição em caso de doença interditaria grave se as demais pessoas legitimadas não existirem ou não promoverem interdição ou se estas também forem incapazes.

Ainda de acordo com a legislação processual, no pedido inicial realizado por meio de petição, é necessário demonstrar a incapacidade do interditando para administrar seus bens e praticar atos da vida civil, apontando desde quando se inicial a incapacidade civil.

Destaca-se que a incapacidade não é presumida, sendo necessária a juntada de laudo médico para fazer prova da necessidade de interdição, bem como o interditado será citado para comparecer perante o juiz, que realizará minuciosa entrevista para que seja convencido quanto a capacidade ou incapacidade para praticar os atos da vida civil. Cabe ainda o direito ao interditando de impugnar o pedido, cabendo ao Ministério Público intervir como fiscal da ordem jurídica.

O NCPC reforça ainda que decretada a interdição será necessário determinar qual o grau de Curatela e interdição praticada, uma vez que nem toda interdição será plena, podendo o interditando praticar ainda alguns atos de sua vida civil.

Na sentença que decretar a interdição o juiz deverá nomear um curador e ainda considerar as características pessoais do interdito, de modo a observar suas potencialidades, habilidades e vontades.

Por fim, julgo destacar que a curatela poderá ser levantada quando cessada a causa que a determinou, portanto, o instituto não é definitivo quando decretado. O que se observa na Curatela é apenas um exercício da proteção da pessoa incapaz, todavia respeitando os princípios da dignidade, da autonomia, da vontade e da liberdade sempre que assim for possível. O NCPC não tem o condão de excluir o deficiente da vida civil, apenas assistir o interditado de modo a promover o seu bem e o exercício dos seus direitos.

 

 

O Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015)

 

A Constituição de 1988 exerce uma importante função em tutelar os direitos individuais, de modo a proteger e garantir a isonomia e principalmente, a dignidade da pessoa humana. Assim, passou a defender o direito de grupos que antes tinham apenas algum grau de proteção sem a prevalência da ideia de inclusão.

A Carta Constitucional ao aplicar o princípio da isonomia material, ou isonomia substancial, conforme denominam Grinover, Cintra e Dinamarco (2009), e ao determinar a inclusão de pessoas com deficiência na educação e na vida pública (a exemplo do art 227, parágrafo 1º, inciso II, e parágrafo 2º da CF/88), impôs às casas legislativas a redação de leis que garantissem os direitos das pessoas com necessidades especiais, e a aplicação direta dos princípios de igualdade, dignidade para promover a plena inclusão.

Art 227. § 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes preceitos: I - aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil;

II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente e do jovem portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de obstáculos arquitetônicos e de todas as formas de discriminação.

  • 2º A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência. (BRASIL, 1988)

Deste modo, após um esforço conjunto do Congresso Nacional e de entidades ligadas a esse grupo de pessoas, em 2015 foi sancionada a Lei 13.146, que também ficou conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, cuja função é assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoas com deficiência, buscando a sua inclusão social e cidadania (art 1º), e ainda defender a igualdade de oportunidades, determinando como discriminação toda forma de exclusão que venha a prejudicar, impedir ou anular o exercício dos direitos e das liberdades da pessoa com deficiência art 4º:

toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação.

  • 1o Considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas.

  • 2o A pessoa com deficiência não está obrigada à fruição de benefícios decorrentes de ação afirmativa. (BRASIL, 2015)

A referida lei ainda modificou o entendimento acerca da capacidade civil das pessoas com deficiência, afirmando no Artigo 6º que a deficiência não é presunção para a determinação da incapacidade civil da pessoa, sendo esta um ente investido de direitos civis como todos os demais cidadãos brasileiros, podendo exercer seus direitos de casar, instituir família, vontades de aspectos sexuais e planejamento familiar.

Art. 6o A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:

I - casar-se e constituir união estável;

II - exercer direitos sexuais e reprodutivos;

III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;

VI - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e

V - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. (BRASIL, 2015)

A referida lei modificou o entendimento de que a incapacidade é presumidamente total mediante uma deficiência e positivou a ideia de que a deficiência em si, não afeta a plena capacidade civil daquela pessoa. De tal modo, conforme será visto em seguida, o presente Estatuto veio a alterar os entendimentos relacionados à capacidade civil e as ações afirmativas do Estado, no sentido de promover ações positivas de inclusão da pessoa portadora de uma deficiência, modificando, por conseguinte, a compreensão anterior e pura que se tinha da Curatela e a imposição de nomeação de um curador.

 

 

A Curatela e a tomada de decisão apoiada: O que muda na curatela com as inovações do Estatuto da pessoa com deficiência?

 

Observa-se que, uma vez que a Lei ampliou o exercício de direitos de pessoas com deficiência, passou também a modificar o entendimento das necessidades de assistência destas. Determinou-se que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, e, por conseguinte, uma vez que altera as noções da própria limitação, acaba por modificar o instituto da Curatela.

Uma das primeiras modificações promovidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência foi acrescentar o artigo 1775-A que permite a curatela compartilhada, de modo a promover a designação de curadores simultâneos, ampliando dentro de uma família, para mais parentes, o dever de cuidado e auxilio em favor da pessoa com deficiência. O estatuto ainda determinou em seu Artigo 85 que a curatela do deficiente é uma medida extraordinária, e que deve se concentrar em atos de natureza patrimonial. O reflexo desta nova lei sobre a deficiência pôde ser percebido por meio da revogação dos incisos II e IV do Artigo 1767 do Código Civil que colocavam como sujeitos a curatela pessoas que por causa duradoura não pudessem exprimir sua vontade e os excepcionais sem completo desenvolvimento mental. O Estatuto ainda alterou o inciso III, do referido artigo do Código Civil, retirando do texto o termo “deficientes mentais”, mantendo apenas ébrios habituais e viciados em tóxicos.

Do ponto de vista processual o Estatuto da Pessoa com Deficiência causa um impacto no procedimento de interdição, que estão delimitados no Artigos 747 a 758 do Código de Processo Civil de 2015. A exemplo do Artigo 755, parágrafo terceiro, do Código de Processo Civil de 2015 determina que:

Art. 755. (...) § 3o A sentença de interdição será inscrita no registro de pessoas naturais e imediatamente publicada na rede mundial de computadores, no sítio do tribunal a que estiver vinculado o juízo e na plataforma de editais do Conselho Nacional de Justiça, onde permanecerá por 6 (seis) meses, na imprensa local, 1 (uma) vez, e no órgão oficial, por 3 (três) vezes, com intervalo de 10 (dez) dias, constando do edital os nomes do interdito e do curador, a causa da interdição, os limites da curatela e, não sendo total a interdição, os atos que o interdito poderá praticar autonomamente. (BRASIL, 2015)

Segundo Stolze (2017, p. 1350) é necessário realizar uma crítica no sentido de que, este artigo possui um texto que não condiz em sua integralidade com a nova realidade promovida pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, uma vez que, por meio da lei sobre a deficiência, não existe mais a designação de curador com poderes gerais, ficando assim prejudicada a parte final do artigo do instrumento processual em que se lê "não sendo total a interdição"

Outrossim, uma das principais modificações promovidas pelo Estatuto refere-se à consagração da Tomada de Decisão Apoiada, uma relativização da função da curatela, segundo qual por meio de um processo, a pessoa com deficiência elege ao menos duas pessoas idôneas e de sua confiança para lhe apoiar na tomada de decisão sobre seus atos da vida civil, fornecendo-lhes informações necessárias para exercer a sua própria capacidade. O interessante deste novo instituto jurídico é a ideia de que a própria pessoa com deficiência passa a ser sujeito legítimo no requerimento do procedimento de tomada de decisão assistida, uma forma de inclusão da pessoa com deficiência na vida civil e comum.

Conforme explica Stolze (2017), o novo procedimento especial é importante por resguardar a autonomia da pessoa com deficiência, promovendo uma maior liberdade, inclusão e promoção da dignidade dessa pessoa.

Assim, a tomada de decisão apoiada foi incluída no Código Civil por meio do Artigo 1783- A, sob a seguinte redação:

Art. 1.783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade. [...] (BRASIL, 2002).

Requião (2015) reconhece a tomada de decisão apoiada como um regime alternativo à curatela, e portanto, alterando o que se tem como pré-definido na jurisdição voluntária. Outrossim, pode-se afirmar que é uma nova modalidade deste tipo de jurisdição.

A adoção de medidas diferentes da curatela é algo que pode ser encontrado na experiência estrangeira. Apresentam-se ora através da criação de novos modelos que excluem a curatela do sistema, como no caso da austríaca Sachwalterschaft e da alemã Betreuung; ora com a criação de modelos alternativos que não excluem a curatela do sistema mas esperam provocar o seu desuso, como se deu com a criação do “administrador” belga e da figura do amministrazione di sostegno italiana; e por vezes simplesmente como figura que conviverá com a curatela, como na sauvegarde de justicefrancesa. No caso brasileiro optou-se pela convivência entre a curatela e o novo regime, servindo inclusive as disposições gerais daquela para este, nos termos do artigo 1783-A, §11. Se na realidade brasileira a tomada de decisão apoiada levará ao desuso da curatela, é algo que somente o tempo dirá. (REQUIÃO, 2015).

 

Este novo instituto visa estabelecer uma rede de sujeitos de modo a propiciar a capacidade de uma pessoa que em procedimentos anteriores erguidos sobre a curatela declararia uma pessoa completamente incapaz e afastado da sociedade, muitas vezes agindo contra os interesses do próprio portador do transtorno e da deficiência.

Do ponto de vista das similaridades, assim como na curatela, a Tomada de Decisão Apoiada destaca o papel de um apoiador como um sujeito positivo, mas cabendo ao Estado ainda o dever de resguardar os direitos e fiscalizar o apoiador em caso de negligência ou excesso.

Também aqui, assim como na curatela, se buscou destacar que o papel do apoiador deve ser positivo ao sujeito que ele apoia, sendo aquele destituído a partir de denúncia fundada feita por qualquer pessoa ao Ministério Público ou ao juiz, caso haja o apoiador com negligência ou exerça pressão indevida sobre o sujeito que apoia (artigo 1783-A, §7°). Essa destituição implicará na necessidade de ser ouvida a pessoa apoiada quanto ao seu interesse em que seja, ou não, nomeado novo apoiador (artigo 1783-A, §8°). (REQUIÃO, 2015).

Destarte, o que se pode afirmar é que no intuito de abranger a capacidade civil das pessoas com deficiência o que se observa é, por conseguinte, uma relativização do instituto da curatela e a criação de novas modalidades previstas dentro da compreensão de juridição voluntária, em que o Estado não aparece como solucionador de conflitos, mas como um garantidor do indivíduo e dos institutos jurídicos disponíveis.

 

 

Conclusão

 

O Direito não é uma ciência rígida, ao longo dos anos, das civilizações e dos períodos históricos, o Direito se modificou, amadureceu e inovou. O Direito é fruto de sua época, e carrega em suas características, as influências do tempo em que se encontra inserido, do contexto histórico, político e social ao qual participa. Deste modo, o seu papel jurisdicional foi sendo modificado ao longo do tempo, passando a não somente solucionar conflitos, mas a tutelar direitos e atender assistencialmente os indivíduos por meio da jurisdição voluntária.

O Direito somente é uma ciência mutável devido a constante construção e desconstrução dos conceitos e compreensão do homem e da tutela de seus direitos na sociedade. Na medida em que mudam as concepções dos indivíduos enquanto seres detentores de direitos, cabe ao Direito adequar seus institutos às novas possibilidades.

Assim, o que se observou neste presente trabalho foi a evolução da ideia de capacidade civil de pessoas com deficiência, de modo a melhorar sua inclusão e integração na sociedade civil. A abertura de novas possibilidades de assistência para tomada de decisão mudou profundamente o instituto da interdição e da curatela, de modo positivo, uma vez que a função do Estado, da sociedade e da família é promover a dignidade, a liberdade e a autonomia dos indivíduos sempre que for possível.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência foi um grande passo na conquista dos direitos das pessoas com deficiência, e adequar a jurisdição voluntária a essa nova realidade é importante para incluir maior leque de pessoas possíveis na vida social.

Destarte, uma vez que o papel da jurisdição voluntária é de assistência a particulares e de tutela dos direitos primados pela Constituição Federal, o Estatuto da Pessoa com Deficiência e as adequações impostas por esse à interdição e à curatela, estão em consonância com a função social jurisdicional e com as garantias fundamentais protegidas constitucionalmente.

 

 

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