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LEMBRANÇAS DE UM TEMPO QUE NÃO VOLTA MAIS

Raquel Rodrigues da Silva

 

O tempo, ah, o tempo... ele não espera, não se demora, não repete...

Por uma questão de flash já não vivo nos momentos que existia vida, infância, brincadeiras de criança, se fecho os olhos posso sentir o cheiro daquele arroz doce com canela feito no fogão à lenha em panelas encarvoadas, os ingredientes eram o básico, arroz, leite, canela e açúcar mascavo, tudo produzido ali mesmo, minha avó que já não está entre nós empregava um amor tão verdadeiro nesse preparo que se tornou depois de décadas uma das saudades mais gostosas que sinto.

Os dias eram preenchidos por coisas concretas e nem víamos passar o tempo, não havia protocolos e regras a se seguir, brincar na chuva, ou na lama, se sujar e subir em árvores era sinônimo de criança saldável. Comíamos quando sentíamos fome e, se não sentia, logo as colheres de “Biotônico Fontoura” se viam presentes.

Tudo era simples, nada de luxo nem dinheiro, nada supérfluo, mas o essencial não faltava, atenção, amor em forma de Merthiolate nos joelhos ralados, não faltavam as espigas de milho verde para trançar os cabelos de minhas bonecas ruivas, não havia Internet, celulares ou televisores. A tecnologia não tinha chegado naquele cantinho de essência, onde o “Pai Nosso” era diário, onde o almoço de Natal era aquela macarronada desejada durante o ano todo, esses encontros de família eram cheios de alegria, não me lembro de presentes em forma material, mas as maçãs pequenas e docinhas que minha tia trazia como lanche na viajem, ficaram gravadas em minha memória. Meus primos e meus irmãos juntos comigo correndo entre os pés de frutas cítricas, eram muito maduras e saldáveis, sem presença de agrotóxicos, aquelas que ficavam nos galhos mais altos eram as que nos encantavam. Quantos tombos daqueles galhos de mexeriqueiras.

A iluminação morna da noite tinha cheiro de querosene, o lampião findava o dia, nos levando a dormir bem cedo, e no dia seguinte o despertador eram os nossos galos e os dos vizinhos que como um coral nos acordavam. Não havia geladeira e nem água encanada, os baldes lançados ao fundo do poço, além de água pura, traziam as “fotografias” daquele cantinho que guardo com carinho nas minhas mais doces lembranças. Bem ao lado do poço em meio aquele frio, me vem nítido na memória a imagem de minha avó, alta com cabelos brancos presos em forma de coque no alto da cabeça, vestida em um vestido azul claro abaixo dos joelhos, cuidando e colhendo verduras na horta farta.

A saudade é um presente de Deus, ela nos teletransporta, nos dá oportunidade de reviver em pensamentos, são muitos os portais que nos levam lá, cheiro, som, cor...

Aquele pedacinho de lugar tão cheio de história já não existe mais, os detalhes impossíveis de serem reconstruídos na integra, também já não existem mais, a soja tomou de conta de todo aquele espaço.

Tenho hoje uma caixa pequena de abelha Jataí, sempre que olho pra ela volto lá naquela varanda de chão de terra onde por cima de uma mesa alta ficava pendurada uma que produzia muito mel, quantos já experimentaram dali. Aquele pé de figo produtivo na cerca da horta, muitas eram as frutas que podíamos colher direto dos pés, mexericas, laranjas, cana “caiana”, manga, figo, banana... Eu costumava também colher as flores que enfeitavam toda a entrada da chácara, aquele jeito de menina arteira vivia com uma delas no cabelo, e meu avô bravo por ter as arrancado, “moça velha”, roseiras, jasmins decoravam além da entrada, decoram as fotos que revejo até hoje, pois era em meio a elas que a nossa família se juntava em ordem de tamanho para sermos fotografados naquelas máquinas analógicas onde era preciso revelar os filmes.

Ah... são tantos os detalhes... não me esqueço da “Beleza, e da “Fumaça”, as vacas que atendiam pelo nome e sem serem atadas se permitiam ser ordenhadas somente por minha avó.  Tudo que consumíamos era de produção própria, café, açúcar, carne dos porquinhos confinados no chiqueiro e das galinhas e patos que ciscavam livremente, pouca coisa precisava ser comprada, até mesmo o sabão era feito de mamona ou de cinza.

A casa era simples de tábuas rústicas, assim como o assoalho, não havia forro e as trancas eram “tramelas”, as portas internas eram cortinas feitas com “chitas” de flores vermelhas grandes as chamávamos de “graxa” (hoje a conhecemos por hibisco). O rádio de madeira tocado à pilha era o objeto mais estimado por meu avô, ai daquele que se atrevesse a mexer, mesmo sendo quase que impossível nós crianças alcançarmos na altura das tesouras da casa (onde ele a guardava).

Ainda sei recitar os versinhos e “ditados” que minha avó contava enquanto fiava o próprio algodão que havia plantado, assim produzia a linha para suas costuras, e nós sentados no chão da sala sem móveis, brincávamos de “burro” (um jogo de baralho), e “jogo da velha”. Quando ela não usava a máquina de costurar a pedal, nós nos ajeitávamos por baixo dela e faziamos da roda que movia a correia, um volante, assim simulando dirigir um carro.

Na cozinha o fogão a lenha nunca ficava apagado, por cima sempre tinha linguiças ou outras iguarias sendo defumada, eu ficava impressionada como ela pegava rapidamente com as mãos as brasas que caiam no chão e jogava de volta para dentro do fogão, lembro-me disso e penso: como pode nunca ter incendiado a casa?! afinal era tudo de madeira.

Esse tempo de hábitos tão singulares e diferentes dos atuais, passei por situações cômicas, no interior era comum os banheiros serem patentes externas, normalmente longe da casa, a do sítio da minha avó era atrás do chiqueiro, entre as bananeiras e um grande buraco que ela costuma jogar os lixos para serem queimados, me lembro de aparecerem cobras lá dentro e ela as matava usando um pau, sem medo algum. O cômico dessa parte do local eram as urtigas (planta que contêm ácido fórmico, em contato com a pele causa irritação e ardência) elas nasciam naturalmente aos redores da patente, quando faltavam os sabugos de milho usados como papel higiênico, a meninada colhia algumas folhas de mato para substituir e sempre vinham junto umas folhinhas dessa planta, e ardia de mais.

Poucas são as lembranças que tenho de brincadeiras e entretenimento junto com meu avô, sempre ranzinza, e de mau humor, tinha o hábito de guardar tudo, coisas sem serventia, pendurava em pregos nas paredes da casa e do paiol, (punhadinhos de pregos enferrujados, rolinhos de arames, feixes de palhas de milho secas que dizia ser útil para enrolar seus cigarros com fumo que eles mesmos planavam), tinha uma frase que sempre dizia sobre esse costume: “Quem guarda o que não quer, tem o que precisa”. No “terreiro”, havia duas grandes forquilhas que ele usava para serrar lenha para o fogão, a “serra traçador” é uma espécie de serrote grande que se é manuseado por duas pessoas, uma de cada lado, meus irmãos e eu subíamos na madeira que ia ser serrada como a cavalo e ele serrava até que a gente caia junto com a madeira no chão, cantando juntos uma rima assim: “Serra, serra, serrador, quantas tábuas já serrou? Uma, duas, três...”.

A admiração que tinha pela minha avó era contínua, a via grande, ativa, íntegra e extremamente forte, forte mesmo, como crianças veem os super-heróis. Os animais eram alimentados com capins que precisavam ser colhidos a foice numa distância grande e íngreme, o meio de transportar esse alimento era uma carroça de madeira visivelmente pesada que ela puxava naturalmente e sem reclamar, colhia o capim e ia arremessando na carroça até ficar um volume bastante alto, depois autorizava meu irmão e eu à subir por cima da carga e seguia morro a cima até a casa, ainda me pergunto se ela fazia isso como forma de brincar conosco ou era para agilizar o retorno e assim não ficarmos para trás atrapalhando a velocidade dela.

Em meio a essa beira de estrada que diariamente ela roçava o capim e levava para os animais, havia brejos e plantas nativas ao seu redor, “Conta de lágrima” era uma das minhas favoritas, uma espécie de bolinhas (sementes) rígidas de cores variadas em tons roxo, que comumente eram colhidas para montagens de acessórios e artesanatos, guardo com carinho um terço que foi obra dela, apesar de tão atarefada em suas lidas rurais, sempre tirava um tempinho onde demonstrava sua sensibilidade e delicadeza nessas atividades cheias de detalhes.

Aquela terra vermelha, produtiva, onde as sementes germinavam sem necessidade de muitos cuidados, víamos por toda parte “Taiboa” assim como a “Serralha” (Espécies de folhagem que depois de refogadas se tornam alimentos nutritivos) eram considerados mato por ser comum encontrar. Polenta firme e esses refogados, para mim tem gosto de infância, uma infância tão cheia de vida, que vive nítida em minhas lembranças, como se o tempo não fosse real, como se tudo ainda existisse.

Hoje a chuva não tem cheiro, me pergunto se “cresci” e perdi um pedaço de mim, ou se realmente aquela poeira molhada está extinta, aquele cheiro se assemelha ao gosto dos amendoins verdes que colhíamos fora do tempo escondido do meu avô, era uma bronca quando ele encontrava os pés virados com as raízes para cima.

Um dos lados da casa era alto do chão, nós crianças podíamos em pé brincar em baixo, lá dormiam os cachorros e até as galinhas, esse lugar de brincar não era dos ideais, bicho de pé e “piolho de galinha” dividiam o espaço e a gente nem se importava, tudo era brincadeira, até a coceirinha gostosa que nos causava. E como se não bastasse, esse não era o único inseto que nos perseguia, ainda posso ouvir o som da latinha de “Neocid” (Tec, tec), e se não fosse o suficiente, lavar no tanque meus cabelos longos com soda caustica se tornava eficaz contra os piolhos, mas ardia e deixava meus cabelos ressecados e ouriçados, isso minha avó resolvia facilmente, na falta da famosa “Brilhantina”, ela reutilizava o vasilhame substituindo o produto de forma bastante caseira, esfregava entre uma mão e outra um pouco de banha de galinha, acomodando e modulando os frizz avoaçados. 

A gente foi crescendo e conosco eles envelhecendo, nos mudamos da pequena cidade e eles em seguida também, venderam as terras e partiram para outro estado, a fragilidade chegou e meu avô resistiu menos aos estragos do tempo, partiu para uma outra dimensão antem dela. Minha avó já debilitada passou a morar com os filhos, os hábitos rústicos foram abandonados, a cidade, a praticidade tomou todos os espaços, o arroz socado no pilão já era algo surreal, tudo tem seu preço e o tempo me mostrou isso, minha avó nos espera lá do outro lado, onde acredito um dia poder encontrá-la. Hoje, há mais de trinta anos só me restam as lembranças de uma infância impar, que não trocaria pelas atuais.